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Uma parábola docemente inquietante

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Maria



Uma parábola docemente inquietante
Frei Bento - 14-03-2010
O perigo das nossas leituras dos Evangelhos reside na forma habitual como são proclamados na liturgia1.Os católicos que, hoje, forem à missa deparam com um texto do Evangelho de S. Lucas muito estranho. É tirado do capítulo 15. Este capítulo começa por dizer que todos os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus para o ouvir. Os fariseus e os escribas, porém, murmuravam: este homem recebe os pecadores e come com eles.

Se tivermos em conta o que estas expressões e grupos sociais representavam, Jesus é o homem que subverte todos os valores. Gosta mais dos maus do que dos bons. As simpatias vão para os que não prestam. Ora, a virtude deve ser premiada e o vício reprimido.

Vem a seguir uma passagem que não pode fazer parte de um bom manual de pastorícia. Abandonar 99 ovelhas para ir procurar a que se tinha desligado do rebanho é expor-se a perdê-las todas. A parábola da dracma perdida, que segue a anterior, não sabe que o tempo é dinheiro. Por outro lado, ninguém dirá que a longa narrativa sobre o chamado filho pródigo possa figurar na biblioteca de uma Escola de Pais. Este capítulo, no seu conjunto, nem na secção de perdidos e achados faria boa figura.

Então, por que terá sido escolhida a última parte - a parábola impropriamente chamada do filho pródigo - para a missa do 4.° domingo da Quaresma? Serão também os Evangelhos "manuais de maus costumes", repetindo a expressão que José Saramago usou para o conjunto da Bíblia?



2.Este texto foi, pelo contrário, muito bem escolhido. Toca, de forma indirecta, segundo a linguagem própria das parábolas, no essencial da revolução religiosa de Jesus, perante a qual continua a existir grande resistência nas comunidades cristãs. Foi, aliás, para elas, para nós, que S. Lucas a escreveu.

Antes de mais, é preciso ler e entender o que está escrito. O núcleo da parábola não é constituído pela conversão do filho pródigo, como habitualmente se diz. Se assim fosse, teria de começar assim: um homem tinha um filho e este foi ter com o pai e pediu-lhe a herança que lhe correspondia... Ora, a parábola começa por dizer: um homem tinha dois filhos. Na lógica da parábola, o mais novo, o estoura-vergas, representa os classificados por pecadores e cobradores de impostos (duplamente pecadores) e o filho mais velho os fariseus e escribas, as duas categorias que presidem ao capítulo em análise, mas universalizando o alcance de duas típicas formas de existência.

A primeira retrata aqueles que, tendo vivido à margem de todas as regras, cometendo os maiores desvarios, descobrem, um dia, que andam a dar cabo da vida e, arrependidos, encontram o caminho da sua recuperação. A segunda representa o mundo religioso daqueles que medem tudo pela observância ou infracção da lei, sempre prontos a espiar o comportamento dos outros a partir da sua tabela de valores. O amor, a gratuidade, a compaixão, a festa, não fazem parte do seu universo e Deus é um juiz segundo as regras que eles estabeleceram em seu nome. Esquecemos, aliás, que a parábola é um triângulo e a revolução cristã não atinge só os típicos comportamentos dos dois filhos, mas sobretudo o comportamento do Pai, que nada tem a ver com a religião farisaica.



3.O perigo das nossas leituras dos Evangelhos reside na forma habitual como são proclamados na liturgia: Naquele tempo, etc. Fazem bem ao levar-nos até ao começo de dois mil anos de história cristã. O cristianismo também é uma memória. Corre-se, porém, o risco de pensar que os classificados como pecadores e publicanos e os designados por fariseus e escribas (os letrados) são categorias sociais e religiosas de um tempo que já passou e que não têm nada a ver connosco.

Na verdade, é precisamente o contrário. As comunidades cristãs de hoje não têm de resolver os problemas das primeiras comunidades e, muito menos, os confrontos em que Jesus foi envolvido. Se lemos os textos hoje, é para encontrar correspondências - não têm que ser literais, simétricas - no nosso tempo, na vida da sociedade e da Igreja; de outra forma, nada justificaria a sua leitura.

Seria, no entanto, perigoso participar numa celebração da missa e começar, cada um, a ver quem são os classificados como pecadores e os autenticamente fariseus da comunidade. Nada pode garantir o acerto. Por isso, Jesus proibiu-nos de julgar. Uma espantosa sabedoria, depois de muitas experiências ao longo dos séculos, chegou à conclusão de que a missa, celebrada em nome de Deus, deve começar sempre pelo acto de cada um se confessar pecador e pedir a misericórdia de Deus e dos irmãos. Sem apontar o dedo a ninguém, todos são interpelados, a começar por quem preside.

Nada disto impede que a Igreja, no seu conjunto, interrogue o Direito Canónico, os seus comportamentos e as diferentes instâncias das paróquias, das dioceses, do Vaticano, em suma, a sua pastoral à luz do capítulo 15 do Evangelho de S. Lucas, aqui evocado.

Que acolhimento têm, na Igreja, as mulheres, os intelectuais heterodoxos, os divorciados recasados, os homossexuais? Não haverá, hoje, nas comunidades cristãs, grupos que acham escandaloso que se perca tempo com ateus, agnósticos, imigrantes de outras culturas e religiões, com o pretexto de que vêm minar os nossos valores culturais e as raízes cristãs da Europa?

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