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Para onde vão os mortos? Frei Bento - 31-10-2010

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Maria



Para onde vão os mortos?
Frei Bento - 31-10-2010
A vida, mesmo para os que duram mais de 120 anos, é breve e limitado o tempo da memória1.Existem quatro propostas - do PS, PSD, CDS e BE - para configurar o direito a decidir, antecipadamente, os tratamentos que cada pessoa quer ou não receber quando já não tiver capacidade de decisão. O tema do Prós e Contras da passada segunda-feira - despido do seu costumado estilo assanhado - foi, precisamente, o Testamento Vital. Importa destacar, neste grande debate televisivo, o esforço de rigor e a preocupação pedagógica dos intervenientes. Procuraram, apenas, mostrar o que existe e o que falta para desenvolver boas práticas, nas famílias e nos hospitais, a fim de que os doentes possam viver e morrer com dignidade, assumindo a insuperável finitude da condição humana.

Não era do programa discutir para onde vão os mortos. No testamento vital poderá, certamente, constar se querem um funeral laico ou religioso, se querem ser enterrados ou cremados, as alternativas práticas mais correntes: os mortos ou vão para o forno ou para o cemitério, um destino de estrume. Segundo certas interpretações filosóficas ou religiosas, a morte não é o fim de tudo: a imortalidade da alma, a reencarnação e a ressurreição apresentam-se como alternativas misteriosas à evidência empírica expressa num funeral. Para uns, essas alternativas são frutos da megalomania do desejo, que não se resigna à finitude; para outros, o desejo de plenitude é a alma da vida intelectual e afectiva, mais estimulante do que resignação niilista.

A linguagem corrente sobre a morte é traiçoeira: não devia ser normal que um filho dissesse que foi enterrar os pais, que a mulher fosse enterrar o marido, que os pais enterrem os filhos. Se fosse verdade, havia razões para denúncias à polícia. Quando, no catolicismo, se celebra a Missa do corpo presente, quem é o sujeito daquilo a que chamam corpo? Mesmo dos mortos só falamos como se fossem vivos.

2.No funeral de uma personalidade que, durante a vida terrestre, foi célebre faz-se, habitualmente, o elogio da sua obra e das suas qualidades humanas. A pessoa desaparece, fica o seu património, o único futuro, brilhante ou medíocre, que já não lhe pertence. Ao fim e ao cabo, passa à vala comum, seja qual for o monumento que tente lembrar aquele que já não existe.

Nos cemitérios, as lápides e os jazigos podem evocar uma biografia de alguém que passou. São visitados por amigos ou familiares, sobretudo no dia dos Fiéis Defuntos. A vida, mesmo para os que duram mais de 120 anos, é breve e limitado o tempo da memória.

Desde há muitos milhares de anos, segundo as diferentes culturas e religiões, os seres da nossa espécie despedem-se dos falecidos, familiares ou amigos, com diversos rituais, procurando dar sentido ao que escapa à nossa compreensão. O nascimento é o salto para a vida. Feitas todas as contas, virá a morte dizer-nos que, afinal, não valeu muito a pena?

Os que foram assaltados por separações inesperadas, mas que resistem a quebrar todas as pontes sobre o abismo, merecem ser escutados (1).



3.Perante a morte, não importa procurar saber quem está certo ou errado. Encontramo-nos todos sem defesa. Alguns textos do Novo Testamento apresentam Jesus, no Jardim das Oliveiras e na Cruz, mergulhado no medo e na angústia, em suor de sangue. No entanto, teve ainda palavras de perdão e de esperança para os outros, morrendo, no maior abandono, entregue ao absoluto mistério. Soube-se depois que, em plena escuridão, tinha morrido nas mãos do amor mais forte do que a morte, tinha-se encontrado com a vida invencível. Na morte, tinha derrotado a morte.

Não tenho resposta para a interrogação desta crónica. Em criança, na catequese, nos sermões ou em casa, sabia muito bem para onde iam os mortos. Via-os descer, aos ombros de quatro homens que se revezavam, ao longo de quatro quilómetros, para o cemitério. O verdadeiro destino era outro: o inferno ou o céu; o purgatório era um preço terrível para chegar ao céu. As crianças sem baptismo iam para o limbo, entretanto desactivado.

Com isto, dava-se cabo de Deus. Não se importava com o mal no mundo e, depois, ainda era implacável com quem morria em pecado mortal.

Levou-me algum tempo a despedir-me desse horror. Por mais misterioso que seja o amor que Deus nos tem, não pode ser compatível com a crueldade. Podem juntar todas as passagens bíblicas que quiserem, mas não me poderão convencer.

Jesus, na interpretação da Bíblia, também sabia fazer as suas selecções. Eu escolho três. A primeira pertence à intervenção de S. Paulo no areópago de Atenas, colhida de um autor pagão: em Deus vivemos, nos movemos e existimos. A segunda vem de uma declaração de S. João: Deus é amor. A terceira é atribuída, por S. Lucas, ao próprio Jesus: alegrai-vos porque os vossos nomes estão escritos nos Céus. Esta declaração de Jesus pode significar: alegrai-vos porque a vossa vida está para sempre inscrita no coração de Deus e ninguém vos poderá arrancar desse amor. Sois amados para sempre.

Não me perguntem como é que isso acontece, quando vemos cremar ou enterrar os mortos, ou nem isso. Confio que o amor que Deus nos tem é mais sábio e mais poderoso do que a morte, do que o pecado, do que as nossas vãs antropologias.



(1) Inês de Barros Baptista, Morrer é só não ser visto, Lisboa, Planeta, 2009; Bárbara Lopes, Poemas do Zimbro, Edição de Autor


In Público

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