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O SÍNODO DOS BISPOS - A BIBLIA

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Maria



Preparando o Sínodo dos Bispos: Um biblista responde
Pe. Armindo Vaz fala ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura

Armindo dos Santos Vaz, Professor de Escritura na Faculdade de Teologia e Presidente da Associação dos Biblistas portugueses, aborda algumas das proposições dos “Lineamenta”.


[b]Entre Bíblia e Tradição mantém-se uma correcta relação no estudo exegético-teológico e nos encontros com o Livro Sagrado?


A relação entre Bíblia e Tradição da Igreja é um dado de facto, quase exigido para se entender, quer uma, quer a outra. Toda a Bíblia nasce da Tradição precedente e consigna por escrito uma tradição dinâmica e progressiva, onde se podem distinguir diversas correntes. A Escritura é fruto da elaboração da Tradição e até o seu momento privilegiado; a Tradição continua mesmo depois da Escritura e esta constitui o primeiro critério de validade para julgar o sucessivo desenvolvimento da Tradição. Pode-se dizer que a própria Tradição da Igreja foi matriz das suas Sagradas Escrituras, ao reconhecer nelas a sua narrativa fundadora, a sua fé e a sua regra de vida (1). A Tradição até teve grande peso para determinar que livros deveriam ser aceites como canónicos/bíblicos: foi a sua ampla recepção durante um longo período no judaísmo ou no cristianismo - e não um decreto formal - que teve como resultado a sua inclusão definitiva no cânone. O cânone da Escritura está profundamente enraizado na Tradição. Reconhecer a autoridade do cânone bíblico é reconhecer a autoridade da Tradição. O cânone bíblico é uma expressão da Grande Tradição da Igreja.


Aprofundando essa relação, constatamos que a Tradição da Igreja é anterior à Escritura do Novo Testamento, situando-se, por outro lado, em linha de continuidade com o “Antigo Testamento/aliança” divino-humano testemunhado em Escritura, referência autorizada para a fé e para a vida da comunidade cristã, pois o próprio Jesus se referia com grande respeito a livros desse conjunto: “como diz a Escritura”.


Aliás, foi o recurso às “Escrituras” do Antigo Testamento, recebidas na Tradição apostólica, que facilitou aos discípulos de Jesus a compreensão do seu mistério, da sua morte e ressurreição. De facto, a apresentação da sua vida - oral e, depois, escrita - por parte da Tradição da Igreja era feita interpretando as Escrituras: “a tradição que vos fiz chegar em primeiro lugar… foi que Cristo morreu pelos nossos pecados de acordo com as Escrituras, e que foi sepultado e ao terceiro dia ressuscitou para a vida de acordo com as Escrituras” (1Cor 15,3-4). Por outro lado, só a fé e a Tradição da Igreja em Jesus ressuscitado como Cristo lhe permitiram receber e reconhecer essa miscelânea de textos como Sagrada Escritura para ela.


A esta ideia de recorte católico até os protestantes prestam hoje maior atenção, num esforço de mútua aproximação, num toque de ecumenismo. Os estudos histórico-críticos da exegese moderna puseram em relevo que os livros do cânone são produto de uma Tradição anterior, deitando por terra a distinção nítida entre Escritura e Tradição; mostram que a Escritura e a Tradição não eram categorias separadas mas realidades imbricadas uma na outra e indissociáveis entre si.


Até seria apropriado falar de tradição escrita e de tradição não escrita, pois ambas são, afinal, duas formas de transmitir a Revelação divina. Especialmente no caso do Novo Testamento, os primeiros cristãos conseguiram transmitir e ensinar a boa nova de Jesus sem Escrituras cristãs oficiais, diferentes das dos judeus, e só gradual-mente consignaram por escrito a sua literatura distintiva. Esta realidade apoia a posição católica de que a fé cristã não está totalmente contida na Escritura: existiu antes e paralelamente à Escritura que a transmitiu. É o problema hermenêutico de saber se a Escritura se pode interpretar a si própria ou se a sua interpretação requer o complemento de um princípio externo, a Tradição. Consequentemente, o estudo recente do cânone tem sido percebido por muitos teólogos como tendente a minar o princípio da sola Scriptura da ortodoxia protestante.

No séc. III a Igreja acreditava ter recebido não só a Bíblia dos judeus e o Novo Testamento da Tradição apostólica, mas também uma forma de «ler» que desvelava o mistério de ambos: do Antigo e do Novo Testamento. Os bispos não eram as únicas pessoas a transmitir esta segunda «leitura» de geração em geração. Mas eram os garantes de que tinha sido transmitida a correcta forma de «ler».


Foi nessa forma de «ler» que o cristianismo se auto-definiu, nos fins do séc. II, pelos desafios fundamentais que lhe foram postos pelo gnosticismo (que produziu grande profusão de escritos pretensamente inspirados que intentavam ampliar o âmbito das Escrituras Sagradas), bem como por Marcião e Taciano (que pretendiam reduzir a colecção de livros pouco a pouco formada pela Tradição das Igrejas).


O paradoxo da história e das relações entre Escritura e Tradição da Igreja vê-se neste virtuoso círculo hermenêutico: a soberania da Igreja é que define quais os livros que constituem o cânone das Escrituras inspiradas; todavia, o múnus de ensinar da Igreja não está por cima da Palavra de Deus e recorre à própria Escritura, não só como guia decisiva para se demarcar de livros que deveriam ficar fora do cânone, mas também para orientar a sua fé e a sua vida. Escritura e Tradição unem-se efectivamente no Espírito de Deus, implicado em ambas: inspira uma e transporta a força da outra no passado para o presente.


Precisamente porque a Tradição é, não uma realidade estática, petrificada, só do passado, nem um depósito estático, mas uma realidade viva e dinâmica, novas interpretações de textos bíblicos não deveriam causar receio de falta de respeito pela Tradição. A Tradição, ao mesmo tempo que é recebida do passado, continua a ser construída no presente: obriga-nos a repensar de novo para o presente o que nos transmitiram do passado as fontes de conhecimento da Revelação de Deus. É natural que seja no campo da exegese bíblica que se tornem mais visíveis as inovações, porque foi ela que mudou bastante e contribuiu para a mudança noutras áreas da Teologia. Mas a Bíblia dá-nos o exemplo de como fazer Tradição/transmissão da fé: é continuar a pensar Deus sempre de novo, em cada circunstância histórica; é a fidelidade ao melhor passado, com criatividade para explorá-lo e fazê-lo progredir no presente; é fidelidade criativa.

A Palavra de Deus é a alma do trabalho exegético e teológico?

O trabalho exegético não está em tensão com critérios teológicos e dogmáticos, nem está propriamente limitado por eles. Sente-se em estreito e constante diálogo com eles. A exegese, mais do que ser autónoma, tem a função de interpretar os textos que são testemunhos da revelação divina. E mais do que ser prévia à reflexão teológico-sistemática, toca-lhe trabalhar em diálogo com ela. É realizada em comunhão com a Igreja, sem esquecer que Igreja e Escritura como Palavra de Deus não são duas realidades justapostas ou subordinadas mas interactivas. Aliás, não deveria existir um antes e um depois entre exegese científica e teologia, ultrapassando a situação de uma exegese à margem da teologia que se praticou desde a época clássica.


Aprovado e recomendado pelo magistério eclesial, o trabalho exegético exclui tanto a compreensão ingenuamente fundamentalista como a compreensão dogmática da Bíblia. O teólogo não recorre à Escritura simplesmente para justificar ou confirmar o ensino do magistério, como acontecia na teologia católica até pouco antes do Vaticano II. É antes a nossa leitura da Escritura a que nos leva a uma reinterpretação dos enunciados dogmáticos. “A palavra de Deus exprimiu-se na obra de autores humanos. Pensamento e palavras são ao mesmo tempo de Deus e do homem… Não se segue, todavia, que Deus tenha dado valor absoluto ao condicionamento histórico da sua mensagem” (2).




Respeita-se adequadamente a sua natureza de Palavra revelada?


Porque o texto bíblico inspirado goza de todas as características literárias de qualquer texto humano e os seus autores se comportam como qualquer outro - como “verdadeiros autores” (3) -, o exegeta, tomando a sério o carácter humano da Bíblia, com todas as suas riquezas e condicionantes literárias, interpreta-a com os mesmos métodos literários, diacrónicos e sincrónicos, o mais científicos possível, que hoje estão ao serviço da análise de qualquer outro livro e, nos seus aspectos técnicos, são partilhados por outras disciplinas. Nem se exclui o recurso a ciências auxiliares (4). Mas esse trabalho hermenêutico não põe minimamente em causa a natureza de Palavra revelada própria da Bíblia.


Uma pré-compreensão de fé anima e apoia a pesquisa científica?

Para realizar a tarefa da exegese, não pomos provisoriamente a fé entre parêntesis: a própria fé requer atenção aos factos sobre os quais está fundada e requer um fundamentado contacto com os textos inspirados que são a sua norma suprema.


As aulas de Sagrada Escritura são um lugar privilegiado para fazer a articulação da Tradição cristã entre o ontem e o hoje, para ela ser vivida e elaborada hoje, na linguagem da Igreja e dos jovens de hoje. Assim os jovens alunos são colocados em relação explícita com a Tradição da Igreja. Em tudo isto, exorta-nos S. Paulo a exercer os ministérios eclesiais “até chegarmos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, à idade adulta, à maturidade da estatura de Cristo na sua plenitude. Assim já não seremos crianças, andando à deriva e levados ao sabor de qualquer vento de doutrina, à mercê da malícia humana e da astúcia que habilmente leva ao erro. Sendo, ao invés, autênticos no amor, crescemos em todos os aspectos em direcção Àquele que é a cabeça, Cristo” (Ef 4,13-15).


Qual é a metodologia habitual de aproximação ao texto bíblico?


É a metodologia recomendada por Pio XII na «Divino afflante Spiritu», pela «Dei Verbum» em geral, especialmente pelo nº 12, e pelos dois grandes documentos da Comissão Bíblica Pontifícia, «A interpretação da Bíblia na Igreja» e «O povo hebraico e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã». As interpretações, eventualmente inovadoras, de textos bíblicos não se desviam da metodologia indicada pelo magistério nem contrariam a Tradição teológica e eclesial. Tornam-se base para uma nova reflexão sobre alguns temas teológicos. Nem os avanços da exegese fazem perder ou falseiam o dom da fé; só a purificam de fundamentalismos prejudiciais para ela.


NOTAS:


(1) Cf. PAULO VI, Discurso aos membros da Comissão Bíblica Pontifícia, a 14.3.1974: AAS 66 (1974) 235-239.


(2) A interpretação da Bíblia na Igreja, III, D, 2.


(3) Dei Verbum, 11.


(4) Cf. LEÃO XIII, Providentissimus Deus: EB 109; PIO XII, Divino afflante Spiritu, 15; e a alocução de JOÃO PAULO II para a publicação do documento “A interpretação da Bíblia na Igreja”.


P. Armindo Vaz, Professor da Faculdade de Teologia, UCP


Fonte: www.snpcultura.org

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