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A NOSSA ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA NO CAMINHO DO POVO DE DEUS-pelos claretianos

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Maria




NOSSA ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA
NO CAMINHO DO POVO DE DEUS

Reflexões e pistas sobre o crescimento espiritual
a partir do trabalho realizado pelas comunidades da Província de Euskal Herria
ao redor do Congresso de Espiritualidade durante 2004-2005

Introdução

A espiritualidade está de moda. Fala-se dela em ambientes eclesiais e também fora deles. Até nós mesmos fomos criando em alguns Organismos Prefeituras de Espiritualidade. Como é possível falarmos ao mesmo tempo de descrença e de despertar religioso, de desafeição eclesial e de novos fenômenos de agrupação religiosa como o produzido recentemente por ocasião da morte de João Paulo II? Algo está acontecendo em nosso mundo cujo significado não acabamos de interpretar. Percebemos as sacudidelas, mas não sabemos onde está o epicentro.

Para sabermos nos mover neste contexto, pode ser-nos útil a metáfora do compasso usada em várias ocasiões por Claret em sua Autobiografia. No livro “El templo y palacio de Dios Nuestro Señor” publicado em Barcelona em 1866, ele explica o sentido desta metáfora: “Cada cristão deve fazer como um compasso, que das duas pontas fixa uma no centro e a outra a coloca em movimento até descrever um círculo perfeito”. Ele aplica a metáfora entre a vida contemplativa e a ativa. Nós podemos servir-nos dela para expressar a necessidade que temos hoje de crescer em uma espiritualidade que, por uma parte, esteja ancorada no coração do Evangelho e, por outra, se abra continuamente à evolução da vida, às mudanças sociais, ao desenvolvimento da igreja.

Organizarei esta reflexão entorno destas três perguntas:

De que estais falando pelo caminho?”
Em que poço estamos bebendo para apagar nossa sede?
Para onde podemos dirigir nossos passos?

De que estais falando pelo caminho?

Podemos começar a reflexão pela pergunta que Jesus formula aos discípulos de Emaús: “De que estais falando pelo caminho?” (Lc 24, 17). Das respostas das comunidades às perguntas da primeira parte do documento, a que trata do contexto atual, se deduz uma conclusão: nossa conversação versa sobre as mudanças aceleradas e profundas que estão acontecendo em todos os aspectos da vida. Temos a impressão de que nossos barquinhos navegam hoje no mar agitado da complexidade. Não só reconhecemos que aconteceram muitas mudanças em nossa vida, mas que a mudança constante parece ter se transformado em categoria absoluta para explicar a realidade. Poderíamos dizer que, nesta tensão entre estabilidade e mudança que caracteriza toda evolução, Heráclito ganhou definitivamente a batalha sobre Parmênides. Estamos entrando em um novo paradigma, que já não é cosmocêntrico (como o da cultura greco-latina, da qual somos filhos), nem teocêntrico (como o da idade média cristã, tão arraigado em nossa forma mentis), nem sequer antropocêntrico (como o da modernidade burguesa, ao qual tardiamente nos enganchamos). Hoje coexistem cosmovisões de tipo ecologista (que repropõem um novo cosmocêntrismo), fundamentalista religioso (que advogam por um novo teocentrismo) e centradas no eu e seus interesses (em clara continuidade com o antropocentrismo moderno, embora utilizem prefixos como “post” ou “ultra”.
Este é o dado objetivo: vivemos em um supermercado de cosmovisões, somos levados por inúmeras ondas que dificultam uma navegação tranqüila. Por isso, um precioso ícone bíblico para interpretar o tempo presente é o da tempestade acalmada. Diante das ondas que balançam a barca na qual navega Jesus e os discípulos e que é símbolo da Igreja, a reação imediata deles é recriminar o Mestre: “Não vos importais se perecemos?” Jesus acalma a tempestade com a força da sua palavra e interpela os seus para que reconheçam sua desconfiança: “Por que tendes medo? Não tendes fé?” A confiança em Jesus e na força da sua palavra continuam sendo essenciais em nosso “mapa de rota”.

O fato objetivo de navegar em um mar em tempestade suscita entre nós reações subjetivas muito diversas. As palavras mais repetidas são: “confusão”, “distração”, “atordoamento”, “pessimismo”, “ausência”. Quando se trata de dar nome concreto a estas ondas que ameaçam a barca, se multiplicam as expressões: “Estamos reduzindo a Igreja a uma simples ONG”, “Vivemos aburguesados”, “Estamos muito ocupados, mas as igrejas se esvaziam”, “A violência repetida nos tornou insensíveis”, “pegamos o vírus do tudo vale”, “Alguns de nós vivem já etsi Deus non daretur”, “as novas tecnologias estão criando mais falta de comunicação”. Mas não faltam os que interpretam esta situação desde a confiança. Um testemunho diz literalmente: “Nada pode acontecer a mim que Deus não queira”. E cita como fundamento desta atitude o texto de João 16, 33: “Tereis tribulações, mas tende ânimo: eu venci o mundo”.
Estamos conscientes das dificuldades que supõe viver espiritualmente em um contexto tão movediço, no qual, uns se emocionam diante da figura dolorosa de João Paulo II e outros consideram um progresso humano a legalização do matrimônio entre homossexuais. Em nosso pequeno universo claretiano, as respostas das comunidades dão por encerrada aquela etapa na qual tudo o que soasse a “espiritual” era suspeito de escapismo. Hoje se fala sem receios de espiritualidade, como se o que uma vez eliminamos precipitadamente se manifestasse agora com mais força na travessia do deserto do secularismo. Outros preferem usar expressões como “renascimento” ou “crescimento” porque expressam melhor a realidade e não se trata de recuperar algo que deixamos para trás, mas de abrir-nos a algo que nos atrai, que nos leva para mais além.

O que as comunidades dizem conecta com o que estão vivendo atualmente a igreja européia e, em boa medida, também a sociedade, como demonstram muitos dos livros e artigos que hoje se escrevem sobre o tema. O que acontece é que este renascimento espiritual poucas vezes se traduz em pertença eclesial e em prática cristã. Os sociólogos da religião falam que a maioria dos jovens crentes europeus não vivem sua fé segundo o modelo do “praticante” (como era tradicional antes do Concílio), nem sequer do “militante” (como se defendeu nos anos 60 e 70), mas do “peregrino”. Mas este é um problema no qual não podemos entrar agora.
Nosso último Capítulo Geral decidiu criar a Prefeitura Geral de Espiritualidade para animar uma dimensão da nossa vida que cada vez mais consideramos necessária. Na análise da realidade se dizia que “embora a maioria dos Claretianos estejam bem integrados vocacionalmente, sabemos que em alguns existe uma falta de integração como conseqüência da separação entre fé e vida, ação e contemplação; a vida de oração e o sentido de pertença são muito débeis; há comunidades cuja oração parece rotineira e desconectada da vida (situação do mundo, relações comunitárias, atividades pastorais, compromisso com a realidade social e eclesial)” (PTV 46). Por esta razão, o Capítulo Geral fixou como prioridade para este sexênio “o cultivo da própria vocação, em fidelidade a nossas raízes evangélicas e carismáticas, expressas nas Constituições” (PTV 48).

Em outras palavras: convidou-nos a colocar em primeiro plano a espiritualidade. Se entendemos por espiritualidade o modo de “viver no Espírito”, se entende que há uma relação profunda entre o tema capitular (“o serviço à vida”) e o cultivo da “espiritualidade”. Uma das respostas dizia: “Hoje é a vida a fonte da espiritualidade”. E outra matizava: “Somos pessoas de boa vontade, mas tendemos a reduzir a fé a idéias. Precisamos uma espiritualidade mais simples, ligada à vida”.


Em que poço estamos bebendo para apagar a nossa sede?

Nos quarenta anos do pós-concílio aconteceu em muitos institutos religiosos um fenômeno ambivalente. Muitos de seus membros, ao não encontrarem em sua própria tradição referências espirituais claras e atrativas, emigraram espiritualmente para outras. Isto aconteceu também com alguns claretianos. A meu modo de ver, as terras principais de imigração espiritual foram cinco:
As espiritualidades orientais não cristãs. (Foi chamativo o êxito que nos anos 80 e 90 teve entre nós Tony de Mello, por exemplo).
A tradição cristã ortodoxa. (Estendeu-se muito o uso dos ícones, sobretudo por mediação da comunidade ecumênica de Taizé).
As grandes tradições espirituais ocidentais. (Entre nós houve formadores “franciscanos”, “joaninos”, “teresianos”, “inacianos”, etc. que deixaram uma marca nos formandos. Em alguns casos se estudava mais As Moradas de Santa Teresa que a Autobiografia de Santo Antônio Maria Claret).

A espiritualidade da libertação. (O Padre Claret parecia um santo demasiado ancorado no século XIX, sem força profética para iluminar a dramática situação social contemporânea e lutar por sua transformação).
Os novos movimentos. (Há um número significativo de claretianos vinculados espiritualmente a alguns deles: Renovação carismática, Caminho Neo-catecumenal, Focolares, Comunhão e libertação, etc.).

Todo carisma reconhecido como tal pela Igreja passa ao patrimônio comum para sua edificação. Os “Exercícios Espirituais” de Inácio de Loiola, por exemplo, não são um legado exclusivo dos jesuítas: são um itinerário aberto para todo cristão.
Neste sentido, beber de “outros” poços não significa necessariamente uma perda da identidade ou uma rejeição desta, mas a abertura a novas mediações que podem ajudar com mais profundidade e fidelidade a viver a própria vocação. O destino de todo carisma é “perder-se” para a construção da igreja.

Mas nem tudo é tão simples. Alguns claretianos se aproximaram destes caminhos porque, assim se expressam, não encontraram em nosso patrimônio uma síntese vigorosa de espiritualidade, um itinerário claro e atrativo, uma socialização intensa e um acompanhamento lúcido e acolhedor. Em outras palavras: porque se sentiram espiritualmente órfãos. Ou, em alguns casos, porque viveram um sentimento vergonhoso de inferioridade. Tiveram a impressão de que a espiritualidade de Santo Antônio Maria Claret era só uma massa rançosa de tradições, não uma experiência original e vigorosa. Em outras palavras: sentiam-se mais seguros amparando-se na sombra dos grandes (São Bento, São Francisco, Santo Inácio), ou inclusive dos pequenos (Kiko Argüello, Chiara Lubich, Ir. Roger de Taizé), que do pobre missionário de Sallent.

Lendo as respostas das comunidades, surpreendeu-me gratamente o comprovar que nesta Província há um enorme apreço pela nossa espiritualidade missionária. Pode-se dizer que os claretianos bebem, sobretudo, no poço da tradição claretiana. Para referir-se a ela se utilizam de fórmulas sintéticas (como por exemplo: “centrar tudo na configuração com Cristo Evangelizador”, “viver a espiritualidade do apóstolo”) e também de fórmulas descritivas (são assinalados alguns elementos sobressalientes: a Palavra de Deus, a Eucaristia, Maria, a dimensão comunitária, etc.).
Quando se pergunta pelo modo como esta espiritualidade se fez biografia, são oferecidas respostas muito variadas, mas, em geral, são reconhecidas três grandes etapas:

A primeira, que coincide com a infância no âmbito familiar e os primeiros anos de formação no seminário, costuma estar caracterizada por uma forte impregnação religiosa de caráter afetivo. Constitui o solo sobre o qual se desenvolvem as seguintes. Alguns a descrevem como etapa ingênua, formalista, ritualista e acrítica. Mas, em geral, quase todos reconhecem que condicionou positivamente a impostação religiosa posterior, embora tenham tido que superar muitas das limitações, sobretudo a de um Deus rígido e castigador e a de uma espiritualidade desconectada do contexto social.

A segunda, que costuma iniciar-se no final do processo formativo e se prolonga durante os anos posteriores, é a etapa crítica. Os estudos, as diversas experiências de contraste, o trabalho pastoral, os impactos sócio-culturais e o mesmo processo pessoal de maturidade, fazem se diminua o compacto edifício da religiosidade infantil. Abundam as perguntas. Em alguns casos, foram vividas autênticas crises de fé.

A terceira, que poderia chamar-se “etapa da síntese”, tem uns perfis mais diluídos. Para descrevê-la se utilizam expressões como: “Agora me sinto mais sereno”, “passei de uma espiritualidade centrada em mim mesmo a outra na qual o protagonista é Deus”, etc.
Nesta tentativa de conseguir uma síntese, um número significativo afirma que gostaria de caminhar no ritmo da Congregação, seguindo as pautas que ela mesma foi dando ao longo da sua história, particularmente, nos anos da renovação conciliar.
Não percebi reticências nem mágoas com respeito ao essencial da espiritualidade claretiana. É algo que parece co-natural e que se aceita com gratidão e alegria: seja por osmose vital (na maioria dos casos), seja por um aprofundamento particular (em alguns). Vários expressam sua gratidão pelas diversas iniciativas que a Congregação tem oferecido para ajudar as pessoas: exercícios espirituais, programas de formação permanente, experiências missionárias, publicações, encontros de vários tipos.


Em que direção podemos continuar caminhando?

Os estudiosos costumam falar de três etapas na formação de uma tradição espiritual cristã:
A primeira se refere a uma experiência religiosa intensa vivida por uma ou várias pessoas. Esta experiência (provocada por um fenômeno de conversão, um acontecimento que mudou sua vida, etc.) lhes dá uma nova compreensão da vida do Espírito, uma nova maneira de entender o seguimento de Jesus e, portanto, de situar-se diante de Deus e diante do mundo.
A segunda está caracterizada pela reflexão sobre esta experiência e sua expressão através de modos diversos: redação de escritos, fundação de grupos, criação de novos métodos de oração, de pregação, de ação social, etc.
A terceira, finalmente, coincide com a entrada destas tradições particulares no grande rio da tradição cristã. Convertem-se assim em ”propostas” de vida evangélica dirigidas a toda humanidade eclesial.

Em nosso caso, a primeira etapa coincide com a experiência espiritual que viveu Santo Antônio Maria Claret. Sua vida inteira, não só seus escritos e obras, é o ponto de partida para ver em que consistiu o dom do Espírito.
A segunda etapa é a articulação e comunicação desta experiência. No caso de Antônio Maria Claret, esta segunda etapa teve muitas experiências. As duas que nos tocam mais de perto são: a fundação da nossa Congregação (com seu correspondente projeto de vida recolhido nas Constituições) e a redação da Autobiografia, como manual de vida para o missionário.
A terceira recebeu um impulso definitivo com a canonização do Padre Fundador, mas é uma etapa que continua sempre aberta.
Hoje nos perguntamos sobre como continuar aprofundando a segunda e a terceira; isto é, como podemos articular e expressar a espiritualidade de Antônio Maria Claret tendo em vista as condições de vida presentes e como podemos contribuir com a edificação da Igreja vivendo e partilhando com outros esta caminhada.

Chegando a este ponto gostaria de partilhar uma experiência pessoal. No ano de 1989 se celebrou em Roma um encontro de formadores de toda a Congregação. A preocupação principal daquele encontro foi esta: Existe em nossa tradição um método formativo tipicamente claretiano? Esta preocupação se desdobra logo em um amplo leque: Podemos falar de um itinerário espiritual claretiano, articulado pedagogicamente? Quais são os núcleos essenciais da nossa espiritualidade? Como podem ser apresentados de forma breve e atrativa?

Confesso que, por trás destes interrogantes, estava, por uma parte, a “crise de identidade claretiana” que muitos tinham vivido nos anos do pós-concílio e, por outra, o estímulo de outros institutos religiosos. A Companhia de Jesus, por exemplo, encontra nos “Exercícios Espirituais” a síntese e a fonte da sua espiritualidade apostólica.
Na tentativa de encontrar uma resposta satisfatória, guiados pela mão sábia do Pe. José Maria Viñas, achamos uma grande luz no estudo da Autobiografia. Aqui está aberta em forma narrativa a espiritualidade do nosso Fundador. Mais ainda, o processo carismático vivido por Claret, ao qual está chamado e para o qual está habilitado pelo Espírito todo claretiano, se condensa simbolicamente em uma passagem da Autobiografia: a alegoria da frágua. Este achado pode parecer uma simples casualidade. Por que deter-nos precisamente nesta alegoria quando sabemos que Claret usa muitas outras para expressar sua experiência? Destaco duas razões fundamentais:

Porque conecta com o grande símbolo usado por Claret na chamada “definição do missionário”: o fogo.
Porque nela não só se apresenta de maneira estática o essencial da espiritualidade missionária mas que se descreve o processo de crescimento e se alude aos agentes e fatores que intervém nele.

Podemos expressar graficamente o processo do seguinte modo:



Nesta alegoria, usada já na Bíblia e freqüente nos padres da Igreja e em vários mestres espirituais, nos é oferecida uma visão de Deus, do homem e da configuração do missionário. Em outras palavras: os grandes núcleos da experiência espiritual. Em sua caracterização precisa se procedeu a partir das fontes primigênias claretianas, dos melhores estudos existentes e da assessoria de vários especialistas. Digo isto para dissipar alguns reparos que possa surgir espontaneamente.

Entendemos por núcleo uma experiência carismática básica que tem a virtualidade de gerar e iluminar todas as dimensões da existência e todos os elementos do carisma. Os núcleos contidos na alegoria da frágua, lida em contexto amplo da vida de Claret, são quatro: um introdutório (que age como preparação dos demais e como eixo entre os sucessivos desenvolvimentos) e três centrais (que guardam estreita relação com os três verbos do Memorial (definição do missionário) através dos quais se descreve a vocação do Filho do Imaculado Coração de Maria: orar, sofrer e trabalhar.
Os quatro núcleos são denominados com algumas palavras extraídas dos textos bíblicos que tiveram um papel decisivo no processo espiritual do Fundador. São conservados em latim para unificar sua denominação nas diversas línguas:

O núcleo 0, chamado QUID PRODEST. Embora não esteja explicitamente na alegoria, trata-se da experiência umbral que nos dispõe e nos prepara para entrar na frágua. O nome deste núcleo está tomado do versículo de Mt 16, 26, que teve um papel decisivo na vida de Claret: “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder sua alma” (cf Aut 68). Com ele se designa toda experiência que questiona a própria vida e nos situa diante da necessidade de escolher e, portanto, de renunciar. Implica sempre o risco, enquanto nos leva a desinstalarmo-nos e a enfrentarmos o desconhecido. Embora seja uma constante ao longo da vida, é mais agudo em determinados momentos e vem a ser a prova da fidelidade vocacional. Trata-se, pois, de uma experiência antropológica vivida em chave de fé. Em Claret apresenta um relevo especial por seu significado e freqüência. Manifesta-se, sobretudo, nas grandes encruzilhadas que teve que viver ao longo da sua vida.

O núcleo 1, chamado PATRIS MEI, se inspira em Lc 2,49 (Cf EA 418). SEQ CHAPTER \h \r 1Este núcleo é o primeiro da frágua. Refere-se à barra de ferro que, antes de ser golpeada, se coloca no fogo. Expressa a relação de Claret com Deus Pai através do Espírito. Expõe simbolicamente a experiência do amor de Deus que esquenta o ferro frio e o prepara para receber a forma. Deixar-se esquentar por amor de Deus -comunicado pelo Espírito- equivale a estar “preocupar-se com as coisas Pai”, como disse Jesus em Lc 2, 49. É, pois, como o fundamento da vida missionária, a experiência sem a qual não se pode produzir nenhum processo de configuração.

O núcleo 2, chamado CARITAS CHRISTI, se inspira em 2 Cor 5,14 (Cf EA 534, nota 67; CCTT 581). SEQ CHAPTER \h \r 1Este núcleo traduz a fase na qual o ferro em brasa é golpeado pelo diretor e pelo aprendiz para que adquira a forma adequada. Equivale simbolicamente ao processo de configuração com Cristo. As marteladas são as virtudes e ações que mais contribuem a conseguir a “forma Christi”. A vida de Claret é uma existência que só se entende desde Jesus Cristo, cujo nome não se pode invocar sem o auxílio de Deus (cf Aut 345). Jesus Cristo é o centro da sua vida entorno da qual gira tudo, é a forma que tem que ir adotando a barra de ferro. Esta centralidade fica refletida no texto paulino que figura como lema do seu escudo episcopal e que dá nome simbólico a este núcleo: “A caridade de Cristo nos impele”. A chave carismática tal como se vê, é essencialmente missionária. Dita chave irá adotando modulações diversas, mas percorrerá toda a vida de Claret. É a experiência claretiana da imitação, seguimento e configuração com o Filho enviado pelo Pai, nascido de Maria e ungido pelo Espírito.

O núcleo 3, chamado SPIRITUS DOMINI, se inspira em Lc 4,14 ss (Cf Aut 118). É o resultado final do processo configurador. A barra de ferro, esquentada no fogo do amor do Pai (e da Mãe) e conformada com Jesus Cristo através das diversas ações formativas, se converte em seta que o Espírito e/ou Maria lançam contra o mal. É o momento da projeção missionária. Quando Claret quer interpretar sua vocação evangelizadora, compreende “de um modo muito particular” as palavras “Spiritus Domini super me et evangelizare pauperibus misit me Dominus”. Nelas se condensa sua experiência de sentir-se ungido e enviado pelo Espírito para anunciar, como Jesus, o evangelho aos pobres. Claret as aplicou também à vocação-missão de cada um dos claretianos. (cf Aut 687).

A seleção, denominação e caracterização destes núcleos não são o resultado de opções arbitrárias, mas, antes, de tematização da experiência carismática original, tal como aparece refletida na Autobiografia, escrita -como sabemos- com uma clara intenção pedagógica. Sua articulação trinitária obedece a um critério teológico-carismático e a uma leitura do processo histórico vivido por Claret. O que o Fundador vive, portanto, como qualquer crente, não é outra coisa senão uma singular experiência de Deus (Pai, Filho e Espírito) que o impele a dedicar-se plenamente ao anúncio do evangelho. Daí que os núcleos se concentrem em Deus e desde Ele se contemplem todos os demais elementos que constituem a base do carisma. Ao proceder assim não se está omitindo a imprescindível referência ao homem, ao mundo e à história, mas estão sendo contemplados desde a luz que mana de uma experiência de graça.
Estes núcleos podem ser também interpretados e vividos em uma chave cordimariana. Com efeito, na espiritualidade de Claret, Maria é:
A Mãe que em seu coração reflete e transmite o fogo do amor do Pai. Ele A chama em várias ocasiões “frágua” (Patris mei).
A Formadora que vai forjando com sua ação materna a barra de ferro que é o discípulo até que adquira a forma do seu Filho Jesus (Caritas Christi).
A Diretora que envia ao missionário, como flecha, a anunciar o evangelho: “Sou como uma seta colocada em tua mão poderosa” (Spiritus Domini).

Convém sublinhar que o Fundador não viveu estes núcleos de forma separada, como se fosse possível parcelar a experiência de Deus, mas acentuando uns e outros (e também diversos aspectos dentro de cada um) segundo as diversas etapas da sua vida. O seu processo se assemelha a um processo espiral que desenvolve, em níveis cada vez mais profundos e harmônicos, o germe da vocação recebida. O mesmo acontece em nós que recebemos o mesmo dom.
Assim entendidos, os núcleos podem ser vividos a modo de um itinerário (isto é, de um caminho experiencial). Este não se circunscreve à formação inicial, mas é um caminho de crescimento que vai desdobrando, aprofundando e harmonizando, com matizes diversos, os núcleos básicos da experiência carismática, tal como expressa o Fundador na Autobiografia (apresentação pedagógica do seu caminho) e como a Congregação os recebeu, desenvolveu e atualizou nas Constituições (expressão normativa da experiência carismática).

Este itinerário espiritual nós o percorremos em uma situação que nos desafia. Como apontamos no princípio e colocaram em relevo as comunidades em suas respostas, a análise dos desafios é muito complexa. Não basta a mera descrição da realidade (tal como a pode fazer um sociólogo ou um analista da cultura). É necessário examina-la em chave missionária e precisar suas repercussões em nós e nos destinatários da mensagem. A nossa é uma espiritualidade encarnada na história, com todas as conseqüências que isto implica.

Nós, enquanto missionários claretianos, nos aproximamos desta complexa realidade desde a vocação que recebemos. Por isso, nossa análise não pode ser neutra ou puramente científica: tendemos espontaneamente a destacar o que favorece ou dificulta o anúncio e a acolhida da Palavra.

No esforço de concentração dos diversos indicadores descobrimos três raízes fundamentais (e, por isso mesmo, trans-culturais) que têm relação com as principais dimensões do ser humano (a intelectiva, a afetiva e a práxica) e com as virtudes teologais que constituem nossa estrutura de graça para viver da Palavra (a fé, a caridade e a esperança). Estas três raízes, precedidas por outra que age como questionadora e dinamizadora delas, contém em si mesmas elementos de regressão e de progresso, de vida e de morte, são encruzilhadas onde se ventila o crescimento humano e cristão.
Estas três encruzilhadas -precedidas por uma que age como umbral- são:
A instalação e a busca, ou a tensão entre a vida concebida com fixação no “fato” ou como pergunta pelo sentido de tudo, em suma, como pergunta pela salvação.
A superficialidade e a profundidade, tensão que afeta os diversos modos de perceber o real, a necessidade de um fundamento e o sentido da vida humana.
O egocentrismo e a oblatividade, que marcam a tensão afetiva do homem e determinam sua verdadeira realização enquanto ser essencialmente aberto.
A passividade e a criatividade, que fazem referência ao dinamismo de mudança e de crescimento, de progressiva ou de regressiva humanização.

Estas encruzilhadas nos afetam de maneira concreta na situação em que estamos vivendo hoje, apresentada na primeira parte do documento sobre a espiritualidade. Se nossa espiritualidade lança raízes nelas, então poderemos superar muitas das dicotomias com que estamos acostumados e constituirá um verdadeiro cominho de humanização. Somos chamados a ser pessoas em busca, profundas, oblativas e criativas. Esta é a fisionomia antropológica de uma espiritualidade missionária para hoje.
Por outra parte, enquanto crentes, estamos convencidos de que o verdadeiro caminho para ser homens, a autêntica espiritualidade, passa pelo seguimento e configuração com o Homem Jesus Cristo (“Ecce homo”). Esta é a boa nova da salvação para os homens e mulheres de todos os tempos e lugares.

Este evangelho se modula ou se codifica de maneira diferente, conforme os mensageiros que o anunciam, os ouvintes que o recebem e as situações nas quais se vive e se proclama. Os núcleos que descobrimos na espiritualidade do nosso Fundador e que reconhecemos também em nós que recebemos o mesmo espírito constituem a resposta que, enquanto missionários, podemos oferecer aos homens do nosso tempo. Entre estes núcleos (apresentados antes) e as encruzilhadas (apresentadas agora) existe uma profunda correlação, que é a base de uma espiritualidade integral e integradora.

Eis aqui, de forma resumida, esta correlação:
Na encruzilhada instalação / busca estamos chamados a viver e anunciar a experiência de QUID PRODEST como experiência que desbloqueia e promove um processo de conversão, que leva a afirmar e a relativizar a bondade do mundo e de todo sucesso ou situação alcançada e que impele a buscar em Jesus Cristo a resposta à pergunta pela salvação.
Na encruzilhada superficialidade / profundidade estamos chamados a viver e anunciar a experiência de PATRIS MEI como experiência de amor incondicional que fundamenta a vida humana e a redime da sua determinação e ambigüidade.
Na encruzilhada egocentrismo / oblatividade estamos chamados a viver e anunciar a experiência de CHARITAS CHRISTI como experiência de humanização na configuração com o Cristo que se entrega e que liberta o homem de todas suas escravidões.
Na encruzilhada passividade / criatividade estamos chamados a viver e anunciar a experiência de SPIRITUS DOMINIS como experiência de unção para o anúncio, para a implantação do Reino, para a cristificação de toda realidade.

Estas experiências constituem em si mesmas momentos da Palavra da qual nos reconhecemos servidores. Não são um anúncio que está fora de nós, mas dons que nos são concedidos para a construção da Igreja e serviço do mundo. Na medida em que as revitalizemos estaremos também habilitando-nos para responder melhor o que a Igreja espera de nós. Antes que um plano de ação, são uma espiritualidade mediada pela Palavra de Deus que nos capacita para vivermos autenticamente como ouvintes e servidores da Palavra.

Para crescermos espiritualmente, para vivermos “nossa espiritualidade missionária no caminho do Povo de Deus”, precisamos reviver a experiência carismática que nos faz ministros idôneos da Palavra. Ou, dito em chave simbólica: precisamos reviver a experiência carismática da frágua. Este caminho de espiritualidade passa, pois, por:
Romper com nossa possível situação de instalação, de aburguesamento, de mediocridade espiritual, de falta de estímulos e de entusiasmo, ou de autosuficiência.

Deixar-nos esquentar (como a barra de ferro na frágua) pelo amor do Pai que dá profundidade à vida, que abranda a dureza acumulada, desbloqueia as melhores molas comprimidas pela passagem do tempo, purifica a escória da nossa infidelidade e mediocridade.
Deixar-nos forjar (como o ferro quente na bigorna) conforme a forma de Cristo até fazer dele verdadeiramente o centro da própria vida e assim aprender a amar oblativamente.
Deixar-nos lançar (como a flecha missionária) pelo Espírito para anunciar criativamente o evangelho, superando a passividade, o afundamento, a rotina, etc.

A maior parte das sugestões de mudança que hoje costumamos fazer encontra perfeita acomodação nesta articulação da nossa espiritualidade. Trata-se, pois, de mostrar, em primeiro lugar, a conexão entre nossas preocupações e necessidades atuais com os núcleos da frágua e, em segundo lugar, de acentuar os dinamismos que podem ajudar-nos a personalizar estes núcleos. Não se trata de uniformizar o caminho espiritual. Estamos conscientes de que “ninguém foi ontem, nem vai hoje, nem irá amanhã para Deus, por este caminho que pelo qual eu vou. Para cada homem existe um raio novo de luz, o sol... e um caminho virgem, Deus”. Mas sabemos também que o cominho pessoal vai sendo feito a partir do dom, da graça recebida. O nosso, enquanto claretianos, pode ser apresentado em articulação com os seguintes quatro núcleos:

O “Quid Prodest” hoje

A vida missionária nos dá asas. Quando se vive desde as raízes, se produz um processo contínuo de retro-alimentação. Quem de nós não viveu um “salto” em sua fé, esperança ou amor, no exercício da ação pastoral, no contato com as pessoas, no trabalho bem feito pelos demais e, sobretudo, com os demais? Mas acontecem também fenômenos de cansaço, desgaste (que, em alguns casos, chega até às fronteiras da depressão ou do burnt-out), perda da motivação. E, em muitos casos, de instalação e de inatividade. Estamos bem como estamos e não vemos necessidade de arriscar nada. A mediocridade, embora indesejada, tem sua dose de compreensão. É a grande tentação, sobretudo, da segunda e terceira idade.
Como se pode desbloquear uma situação assim? Como podemos colocar-nos ao alcance da mensagem interpeladora do “Quid prodest”? Quando Claret se sentiu sacudido por estas palavras de Jesus tinha a cabeça “cheia de máquinas” (cf Aut 68). Nós a temos cheia de atividades (de fato, falamos do ativismo como um dos nossos males), de liames afetivos, de rotinas intelectuais (“Estamos muito informados, mas assimilamos muito pouco”).

O milagro do “Quid prodest” tem muito de experiência gratuita. Não chega quando queremos, mas quando menos esperamos. Tem muitas variantes: “Que proveito tira do que está fazendo se você está distante do essencial?, “sai da sua comodidade e vai para a terra que eu lhe mostrarei”, “vale a pena continuar sendo missionário para exercer simplesmente uma profissão?”, “o que você pode apresentar para o balanço na hora da morte?”, etc.

O instrumento que nos ajuda a estarmos conectados é -dito com a palavra tradicional- o exame. A estas alturas ninguém de nós vai entendê-lo como pergunta obsessiva pela moralidade das nossas ações. Falar de exame hoje significa falar de um exercício de cair na conta (por usar uma expressão tomada do campo da psicologia) ou de discernimento (por usar a palavra teologicamente mais precisa). Este exame pode ter muitas formas. Destaco duas:

Uma forma individual: o hábito de escrever regularmente sobre o que acontece conosco, de tal modo que possamos identificar sentimentos, frustrações, esperanças, dúvidas, etc. Este “diário intensivo” nos ajuda a tirar do nosso porão as experiências acumuladas, para ir melhorando o auto-conhecimento e a auto-estima e, sobretudo, pode ser uma base realista para descobrir a passagem de Deus pela trama da nossa vida e, conseqüentemente, “renovar cada dia o propósito de progredir no caminho do Senhor” (CC 52). Somente assim podemos superar as “instalações” (mentais, afetivas, religiosas) em que podemos estar ancorados. O exame pessoal nos mantém despertos, em busca constante.

Uma forma comunitária: o retiro mensal, entendido -tal como o apresentam as Constituições e não como acontece na prática, se costuma fazer- como oportunidade para meditar sobre a própria vocação, renovar a esperança da glória futura e preparar melhor para a vinda do Senhor (cf CC 52). A dimensão escatológica aparece nítida. O dia de retiro é o momento para nos confrontarmos com a verdade da nossa vida. É um momento mensal de autêntico “Quid prodest”. Neste contexto é mais fácil recorrer à “ajuda dos irmãos” em forma de revisão de vida. As negativas experiências do passado não devem privar-nos de um instrumento que, bem encaminhado, é de um valor extraordinário para continuar crescendo: “Desejem vivamente e peçam ser corrigidos e avisados; e respondam a todas as correções com ação de graças e com íntimo reconhecimento” (CC 54). Os perigos de subjetivismo e narcisismo inerentes à prática do exame pessoal são superados pela prática da revisão em comum que, além disso, amplia nosso horizonte e nos confronta com as grandes questões que verdadeiramente preocupam um missionário: as necessidades do mundo e da Igreja, os sinais do Reino de Deus.

O “Patris Mei” hoje

Não há transformação sem fogo. A espiritualidade não é tanto o resultado de um esforço voluntarista por mudar o que é resultado de atitude de docilidade à ação do Espírito, quem nos configura com Cristo. A experiência do fogo, na simbologia da frágua, alude à experiência do amor de Deus, mediada maternalmente pelo Coração de Maria, dócil ao Espírito que derrama em nós o dom da caridade.

O fogo esquenta, purifica, abranda, ilumina. O Fundador se serve freqüentemente deste símbolo para falar do amor e do zelo do missionário. Os “homens de Deus” têm o rosto resplandecente pelo fogo, como Moisés. Há uma afirmação isolada -e, por isso mesmo, não deve extrapolar-se- que me impressionou pelo que tem de atrevida: “No colégio ninguém nos vê como missionários” que é como dizer: ninguém nos considera hoje “homens de fogo”. Como podemos ser “homens de fogo”, curados pela experiência do amor de Deus? Como buscar antes de tudo “a glória de Deus”, que é o objetivo para o qual foi fundada nossa Congregação (cf CC2)? Também neste núcleo há duas mediações principais:

A prática assídua da oração: “Nós que assumimos a obra missionária de Cristo devemos também imitá-lo em sua oração assídua e escutá-lo quando recomenda e ensina a oração incessante” (CC 33). No memorial do missionário, Claret diz que o filho do Coração de Maria só pensa em imitar a Jesus no orar. É o verbo pelo qual tudo começa! Podemos continuar debatendo o que queiramos sobre o significado da oração em um mundo secularizado, de seus possíveis riscos, etc. Mas, enquanto fujamos deste fogo de relação com Deus, não haverá transformação possível. Sobre este ponto há tal unanimidade na tradição espiritual de todos os tempos que qualquer raciocínio contrário soa a desculpa. Como ajudar-nos uns aos outros a entrar de cheio em um caminho sustentável de oração? Penso em coisas tão simples como uma harmônica distribuição de nossos horários, a criação de ambientes adequados, mas, sobretudo, em uma atitude partilhada que poderia expressar-se com as palavras dos apóstolos: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11,1). Quando um grupo sedento de espiritualidade se atreve a proferir esta petição humildemente, consciente de seus altos e baixos, algo novo começa a acontecer. Devemos implorar juntos o dom da oração. E não esquecer que a oração do missionário, em todas as suas formas, é sempre uma oração apostólica: “Ó meu Deus e meu Pai! Fazei que vos conheça e vos faça conhecido; que vos ame e vos faça amado; que vos sirva e faça que vos sirvam; que vos louve e vos faça louvado por todas as criaturas. Fazei, meu Pai, que todos os pecadores se convertam, que todos os justos perseverem na graça e todos consigam a eterna glória. Amém” (Aut 233). Eis aqui uma bela síntese de tudo o que significa o núcleo “Patris Mei”.

A acolhida da Palavra de Deus: “A Palavra de Deus, que devemos proclamar, escutemo-la antes em assídua contemplação e a partilhemos com os irmãos, para que nós mesmos nos convertamos ao Evangelho, nos configuremos com Cristo e sejamos inflamados pela sua caridade que deve impelir-nos” (CC 34). A última frase é clara: a Palavra é o fogo que pode nos inflamar e impelir, que nos dá o dom do ardor missionário. Nos últimos anos, sobretudo, a partir do Capítulo Geral de 1991, avançamos por este caminho, que foi um caminho muito transitado por Claret. Continuemos com perseverança. A semente plantada vai dando seu fruto, pouco a pouco. Emociona ver em uma comunidade rural nos arredores de La Ceiba (Honduras), por exemplo, como se partilha a Palavra entre as pessoas que mal sabem ler. Por que se torna tão difícil entre nós, os “profissionais” da Palavra? Por que ainda existem tantas reticências infantis, quando a comunidade que partilha a Palavra se constrói sobre a rocha firme? Tudo o que façamos neste sentido, tanto pessoal como comunitariamente, nos ajudará, sem dúvida, a crescer espiritualmente.

A prática da oração e a escuta da Palavra nos curam da superficialidade à qual, freqüentemente, nos leva a cultura de hoje, desbloqueia nossos sentidos interiores e, sobretudo, traspassando todas as mensagens competitivas e excludentes, recria nossa verdadeira identidade: ”Tu és Filho de Deus”, nos prepara para a fraternidade: “Os outros filhos de Deus são teus irmãos”, mantém a esperança contra toda esperança: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rom 8, 31). Não temos necessidade de refugiar-nos no rol social, no êxito, em outros “ídolos” compensatórios: a carreira, a nação, o esporte, etc.


O “Charitas Christi” hoje

O fogo dispõe, mas não basta. A tarefa de transformação exige também um lento processo de forja. O ferreiro leva a barra de ferro do fogo à bigorna e da bigorna ao fogo, em um contínuo vai e vem. No método da fundição, o ferro líquido é derramado nos moldes e assim rapidamente se obtém produtos acabados, perfeitamente iguais. Na técnica da forja, pelo contrário, o processo é artesanal, lento, os produtos são únicos (não há duas peças exatamente iguais); vai-se adiante e se volta atrás; há um diálogo constante entre o fogo e o martelo. Com terminologia de hoje, podemos dizer que se trata de um processo “personalizado”.
Este segundo núcleo da frágua (centrado na atividade que o ferreiro faz sobre a bigorna) simboliza o processo de configuração com Cristo, que é cabalmente ao que estamos chamados. “Devemos contemplar assiduamente a Cristo e imitá-lo, penetrados do seu Espírito, até que já não sejamos mais nós mesmos os que vivamos, mas que seja o Cristo quem realmente viva em nós. Somente deste modo seremos válidos instrumentos do Senhor para anunciar o Reino dos céus” (CC 39).

Como acontece o processo de configuração? Encontramos uma resposta sintética nas mesmas Constituições: “Tentamos conseguir nossa configuração com Cristo por meio dos votos religiosos em uma comunidade missionária. Nós a alcançamos também e a expressamos por meio de outras virtudes, conforme nosso carisma próprio na Igreja” (CC 39). Aqui está contido todo um programa de seguimento. No limitado espaço deste encontro não podemos desenvolver a referência aos votos, à comunidade e às virtudes apostólicas. Quais são as duas mediações que podem ajudar-nos a viver o que as Constituições nos apresentam?
A eucaristia sacramental: “Celebremos diariamente e com plenitude de espírito o mistério da Eucaristia, unindo-nos a Cristo Senhor, que proclama palavras de vida, se oferece a si mesmo pelos irmãos, honra o Pai e edifica a unidade da Igreja” (CC 35). O Congresso de Espiritualidade faz uma bela apresentação do que significa hoje para nós viver o sacramento da eucaristia (cf NEM pp 48-50). A exortação apostólica de João Paulo II para o ano da Eucaristia, Mane nobiscum Domine, nos oferece sugestões muito concretas para revitalizar a celebração do sacramento e alimentar uma espiritualidade eucarística, que, por outra parte, foi típica do nosso Fundador. Quem se alimenta do “pão da vida” aprende a viver e a transmitir vida, e se transforma no que come. A eucaristia nos vai forjando por dentro, nos dá a energia de que precisamos para viver os votos como caminho de liberdade, para construir a comunidade com nossa entrega permanente e para praticar as virtudes que nos dão um rosto missionário.

A eucaristia existencial: A dinâmica da eucaristia sacramental é a dinâmica de uma autêntica espiritualidade missionária. Nós que participamos diariamente da eucaristia sacramental vamos nos transformando em um pão que é “tomado, abençoado, partido e repartido”. Entendo por “Eucaristia existencial” a atitude de completa disponibilidade para converter-nos em alimento para os demais. De uma pessoa realmente boa costumamos dizer que “é um pedaço de pão”. O que nos assemelha a Jesus não é tanto a realização dos serviços que nós escolhemos e programamos (e que freqüentemente são só um prolongamento do nosso eu narcisista ou do nosso desejo de “realizar-nos”) mas daqueles que nos pedem os demais (e que freqüentemente são os realmente necessários). Nesta contínua desapropriação, que tem muitas traduções práticas (atitude para trabalhar em equipe, disposição a aceitar novas destinações, abertura a novas pessoas e situações, etc.), se verifica esta dimensão de oblatividade que é característica do núcleo “Charitas Christi”. Nesta perspectiva se entende também o verbo sofrer, que faz parte da nossa definição missionária, adquirem profundo sentido nossos votos religiosos e as chamadas virtudes apostólicas e, naturalmente, encontra espaço nosso compromisso com os mais pobres, sem que isto soe a canção de moda ou a simples desafogo afetivo.

O “Spiritus Domini” hoje

A flecha preparada não se guarda em um museu. Seu destino é ser lançada, embora se estrague com o passar do tempo. Estamos chamados a ser flechas missionárias: “Nossa vocação especial no Povo de Deus é o ministério da palavra, com o qual comunicamos aos homens o mistério íntegro de Cristo. Com efeito, fomos enviados a anunciar a morte e a ressurreição do Senhor, até que Ele volte, a fim de que todos se salvem pela fé” (CC 46).
Quem nos lança? O nome do núcleo aponta a resposta: o Espírito do Senhor Jesus. E também, na experiência de Claret, Maria: “Sou como uma seta, colocada em vossas mãos poderosas. Lançai-me, minha Mãe”. A flecha não toma uma direção sozinha, é lançada.
O anúncio do evangelho hoje não é fácil. Dá a impressão de que não sabemos a que “dianas” dirigir as flechas do evangelho. As comunidades, em seus informes, colocaram nomes a algumas destas dificuldades provenientes do contexto social, eclesial e da mesma pessoa do claretiano. A dinâmica do anúncio oscila hoje entre a tendência à rotina de quem se contenta com “cumprir suas obrigações”, frustrados porque nada do que tentamos “dá resultado”, nada consegue perfurar o muro da descrença e a chamada à criatividade, de quem está convencido de que a tarefa do evangelizador é escutar e semear, não recolher os frutos.

Como ser criativos? A criatividade é fruto da memória. Nossa resposta será sempre pobre se não nos treinamos pacientemente e se não acumulamos experiências que nos permitam apresentar novas respostas. Os dois dinamismos que podem ajudar-nos a crescer nesta espiritualidade da criatividade são:
O estudo: “É necessário que nossos irmãos progridam ao mesmo tempo na virtude e na ciência, para estarem à altura dos tempos e serem idôneos para exercerem frutuosamente o ministério. Cultivem com toda diligência as ciências sagradas e as humanas e continuem, com constância, progredindo nas mesmas” (CC 56). Na tradição congregacional o estudo foi considerado, junto com a oração, um dos dois pés do missionário. Hoje, em geral, perdemos o hábito do estudo regular. Cresceu extraordinariamente o tempo dedicado à informação, mas não encontramos caminhos adequados para continuar a formação. Algumas das iniciativas existentes, muito bem valorizadas pelas comunidades, não são suficientes para sair ao encontro das demandas atuais. O resultado é um progressivo empobrecimento pessoal e uma criatividade pastoral reduzida a mera ocorrência.
A missão partilhada: “Assumimos como prioridade a missão partilhada como nosso modo normal de missão e que todos os claretianos aceitem as conseqüências que isto tem em nossa espiritualidade, na pastoral vocacional, nos processos formativos, na vida comunitária, no trabalho apostólico e nas instituições de governo e economia” (PTV 37). A missão partilhada, em seus distintos níveis, nos leva a sairmos de nós mesmos. Neste êxodo somos convidados a ouvir outras vozes, impostar de outro modo o já sabido, buscar novas linguagens; isto é, a adentrar-nos no caminho da criatividade. Somente no diálogo com os leigos e outros consagrados e ministros ordenados podemos tomar o pulso da vida que muda, dos problemas que surgem no campo da sexualidade, família, economia, política. Juntos podemos iluminar algumas respostas desde o evangelho.

À luz deste último núcleo da frágua se deve entender o último verbo do memorial claretiano -trabalhar- e todas as especificações que lhe temos dado em forma de opções, prioridades, projetos, etc. O trabalho do missionário não coincide com o cumprimento do dever, sem mais nem menos: é o resultado de um envio, o fruto de um caminho espiritual de transformação. Por isso, pode ser portadores de frutos. Compreender-se-há por que, quando faltam os dois verbos anteriores (orar e sofrer), o trabalho se converte em nossa prisão. O que devemos buscar com nosso trabalho não é preencher nosso vazio interior, mas buscar, em continuidade com a glória de Deus e nossa própria santificação, “a salvação dos homens do mundo inteiro, segundo nosso carisma missionário na Igreja” (CC 2).


Conclusão

No final deste caminho podemos ter a sensação de ter ampliado tanto o campo da nossa espiritualidade que não fica fácil mover-nos nele. E, no entanto, lançando mão da alegoria da frágua, procuramos exatamente o contrário: sintetizar tudo em quatro núcleos essenciais, que recebem seus nomes a partir da Palavra de Deus. Segundo os diversos momentos da nossa vida, estes núcleos serão mais ou menos acentuados. O que importa é compreender seu conteúdo essencial e o processo de crescimento que descrevem.
Mas, se tivéssemos que apurar ainda mais o desejo de brevidade, poderíamos voltar à síntese que o mesmo Fundador elaborou para nós e que conhecemos com o nome clássico de “definição do missionário” ou com o mais atual de “memorial”. Nossa espiritualidade claretiana consiste em “seguir e imitar Jesus Cristo em orar, trabalhar e sofrer, e em procurar só e unicamente a maior glória de Deus e a salvação de todos os homens”.

Espero que o caminho feito nos tenha ajudado a carregar de sentido cada uma das expressões. Não deveríamos esperar muito mais. A arquitetura conceitual pode e deve mudar; os conteúdos essenciais permanecem, porque são pura essência evangélica. Voltamos à metáfora do princípio. Se uma ponta do compasso da nossa vida está ancorada no essencial, a outra pode mover-se livremente: sempre descreverá um círculo perfeito.

Encomendo esta aventura ao Coração de Maria, em cuja frágua nos forjamos como missionários seguindo Cristo Missionário.

Gonzalo Fernández Sanz, CMF
Prefeito Geral de Espiritualidade
“A palavra espiritualidade se emprega atualmente para descrever desde as práticas da New Age e as terapias para superar as dependências (por exemplo, programas de Doze Passos como o dos Alcoólicos Anônimos) até formas de meditação oriental, grupos de oração e retiros no deserto” (L. CUNNINGHAM-K. EGAN, Espiritualidad cristiana. Temas de la tradición, Sal Terrae, Santander 2004, 14).
Cf pp. 569, 572, 674.
SAN ANTONIO MARÍA CLARET, Escritos Espirituales (BAC 471), Madrid 1985, 147.
Cf Mt 8,23-27; Mc 4,35-41; Lc 8,22-25.
Conforme a última estadística do CIS (março de 2005), 79,3 por cento dos espanhóis se declara católico, diante de 11,7% que se considera não crente e outro 4,9% que se define ateu. Além disso, 2% diz ser crente em outra religião. A pesquisa, realizada sobre 2.500 pessoas, revela também que dos crentes 47,1% quase nunca assiste uma missa e outros atos religiosos, fora as bodas, batizados, primeiras comunhões ou funerais. 19,7% diz que assiste várias vezes ao ano, 13,1% algujma vez no mês e chega a 17,2% a porcentagem dos que acodem à missa quase todos os domingos e dias de festa. 2,3% vai várias vezes na semana.
Cf D. HERVIER-LÉGER , Religion et écologie, Éditions du Cerf, Paris 1993.
Cf G. GUTIÉRREZ, Beber en su propio pozo. En el itinerario espiritual de un pueblo, Sígueme, Salamanca 1984, 73; W. PRINCIPE, “Toward defining Spirituality”: Sciences religieuses / Studies in Religión 12/2 (1983) 127-141. Convém ver a análise que faz o Catecismo da Igreja Católica, n. 2684.
“No começo, quando estava em Vic acontecia em mim o que acontece Numa oficina de ferreiro, onde o diretor coloca a barra de ferro na forja e quando está bem quente, o tira e o coloca sobre a bigorna e começa a descarregar golpes com o martelo; o ajudante faz o mesmo e os dois vão se alternando e como num compasso vão dando marteladas e batendo no ferrão até ele chegar na forma que se deseja. Vós, Senhor meu, e meu Mestre, pusestes meu coração na forja dos santos exercícios espirituais e freqüência dos sacramentos e assim, quente meu coração no fogo do amor por Vós e por Maria Santíssima, começastes a dar golpes de humilhações e eu também dava os meus com o exame particular que fazia sobre esta virtude, para mim tão necessária” (Aut. 342).

A oficina de ferreiro é o ambiente formativo de Vic.
O Diretor é o Pai, Cristo, Maria e os diversos responsáveis pela formação.
A barra de ferro é Claret mesmo enquanto sujeito passivo, enquanto discípulo que se deixa amoldar.
A frágua é, sobretudo, o Espírito Santo, mas também o Coração de Maria e diversos meios ascéticos como a oração e os exercícios espirituais.
A bigorna representa as situações e provas da vida.
O ajudante é, de novo, Claret enquanto sujeito ativo.
As marteladas equivalem às diversas ações formativas.
A forma que se propõe o Diretor não é outra que Cristo mesmo ou a seta que deve ser lançada contra os inimigos do evangelho.
“Como o fogo que penetra no ferro quando este é introduzido na forja: o ferro conserva a substância do metal mas se converte e faz real o fogo que o habilita e literalmente o trans-figura. Esta parábola maravilhosa que utilizou por primeira vez São Macário, o Grande, ressoa através de toda tradição cristã, do Oriente ao Ocidente. Hoje como ontem, Cristo nos convida a subir ao monte santo, ao Tabor, para entrar com Ele no fogo divino. A meditação nos abre, concretamente, este caminho...” (ALPHONSE Y RACHEL GOETMANN, Más allá de nosotros mismos. Iniciación a la contemplación, Mensajero, Bilbao 2001, 97).

Sobre uma existência cristã vivida como verdadeira experiência, cf, o sugestivo estudo de: S. ROS GARCÍA, “La experiencia de Dios: ‘Decid si por vosotros ha pasado’”: Revista de Espiritualidad 253 (2004) 449487.
L. FELIPE, Versos y oraciones de caminante, Buenos Aires 1963, 35.
“O amor faz em quem prega o mesmo que o fogo num fuzil. Se um homem atira uma bala com os dedos, bem pequena ferida faz; mas, esta mesma bala impelida pelo fogo da pólvora, mata. Assim é a divina palavra” (Aut 439). “O mesmo Espírito Santo, aparecendo em línguas de fogo sobre os Apóstolos no dia de Pentecostes, nos dá a conhecer bem claramente esta verdade: que o missionário apostólico deve ter o coração e a língua de fogo de caridade” (Aut 440).

Coloquei em itálico as mediações às quais aludem as Constituições. Quando se fala de “outras virtudes”, o Capítulo VI menciona explicitamente: a caridade apostólica (40), a humildade (41), a mansidão (42), a mortificação (43), a alegria nas adversidades e a solidariedade com os que sofrem (44), a paciência nas provas e a união com Cristo na enfermidade e na morte (45).
Cf G. FERNÁNDEZ SANZ, “Compartir la misión como camino de transformación”: VARIOS, La Misión Compartida, Publicaciones Claretianas, Madrid 2002, 191-211.










Nossa espiritualidade missionária no caminho do Povo de Deus Reflexões e pistas

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Nuestra espiritualidad misionera en el camino del Pueblo de Dios Agurain, 21 de mayo de 2005

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0: Preparação para entrar

1: Ferro quente (fogo)

2: Ferro forjado (terra)

3: Flecha lançada (ar)


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