Uma inesgotável escola de espiritualidade
Frei Bento - 07-02-2010
Com Eckhart, Suso e Tauler pela primeira vez teólogos profissionais falavam na língua dos leigos1. As Edições Paulinas abriram uma colecção designada "Sabedoria Cristã", permitindo ao cristianismo respirar a dois pulmões, como desejava João Paulo II: o da Igreja do Oriente e o da Igreja do Ocidente. Já saíram várias obras essenciais. A quarta é constituída pelos Tratados e Sermões de mestre Eckhart (1260-1328), com prefácio do prof. Paulo Borges e introdução de fr. José Luís de Almeida Monteiro, O.P. Com outro volume de Introdução a Mestre Eckhart, de Michael Demkovich, procura-se recuperar, ainda que tardiamente, a voz deste grande místico ignorado em Portugal.
O grande especialista do pensamento medieval, Alain de Libera (1) - que vou seguir neste texto - sustenta que a filosofia alemã, nos séculos XIII e XIV, estava inteiramente concentrada na Ordem dos Pregadores. Alberto Magno (falecido em 1280) era alemão por nascimento e carreira. As suas ideias, porém, eram parisienses. Os filósofos alemães eram discípulos de Alberto Magno, formados por ele, em Colónia, no Studium Dominicano ou dependentes das suas teses.
O mais famoso dos discípulos foi mestre Eckhart, filósofo, teólogo, místico e dotado de grande capacidade prática. Foi prior, provincial, vigário geral, professor na Sorbonne de Paris e em Colónia. É considerado o maior místico da Idade Média. A sua influência atravessou os séculos e as culturas, uma ponte entre o Ocidente e o Oriente. M. Heidegger aludia ao "velho mestre, de quem aprendemos a ler e a viver". Continua a marcar a sua presença nas investigações feministas, sufistas e budistas, nos seguidores da New Age e, com redobrado fascínio, entre escritores cristãos de várias tendências.
2.Este místico é também aclamado como "pai da especulação alemã". Foi condenado a 27 de Março de 1329 por um dos Papas de Avinhão, João XXII. Apesar de todas as censuras e reprovações, ler hoje mestre Eckhart é continuar a beber numa fonte de água viva. É também uma escola, pois Eckhart teve discípulos imediatos de grande envergadura: Henrique Suso e João Tauler. Com ele, legaram ao cristianismo uma das suas mais altas e exigentes expressões, uma teologia contemplativa e prática, cujas palavras-chave são a "deificação" e o "desprendimento", marcas da mística renana.
Durante uns 60 anos, no século XIV, no vale do Reno, na região de Colónia e de Estrasburgo, viveu, pregou, escreveu e meditou uma extraordinária geração de homens chamados "místicos renanos". Pertenciam os três - Eckhart, Suso e Tauler - à Ordem Dominicana. Eram intelectuais: Eckhart era o terceiro alemão com o título de "mestre em Teologia", pela Universidade de Paris, a maior distinção intelectual que se podia imaginar naquela época. Os outros eram seus alunos e discípulos. Entre 1300 e 1360, esses três irmãos mendicantes transformaram o modo de pensar e de viver o cristianismo, inventando um tipo de intelectual que o mundo medieval não tinha conhecido até então: o de "mestre de leitura" que fosse também, e em primeiro lugar, "mestre de vida".
3.Na Idade Média, sempre houve espirituais e sábios. Na época das universidades - a partir dos anos 1200 - existiam intelectuais, profissionais do pensamento, numa palavra, "clérigos". Com Eckhart, Suso e Tauler surge outra realidade. Pela primeira vez, teólogos profissionais pregavam, ensinavam e orientavam, falando na língua dos leigos, perante auditórios de não profissionais que ignoravam tanto a filosofia como a teologia sistemática. Popularizaram, ou, melhor dito, desprofissionalizaram a sabedoria cristã. Dirigiam-se ao mundo dos "simples".
Este novo destinatário do saber e da fé em busca de inteligência não era fruto de uma iniciativa pessoal, fazia parte da sua missão de irmãos pregadores. Tratava-se, sobretudo numa época de intensa vida religiosa, de conduzir um imenso mundo de mulheres, monjas ou beguinas, pelos caminhos da verdadeira doutrina. De facto, a espiritualidade feminina era, na altura, tão florescente que inquietava o magistério. A singularidade dos três pregadores consistiu em ter cumprido a sua função, colocando-se na escola do seu auditório, aprendendo com o seu contacto e aceitando e vivendo todas as suas consequências.
Era duro e sofredor o mundo em que viveram: o papado estava em guerra ideológica com o império; a peste começava a assolar a Alemanha; queimavam-se os livros e, por vezes, os seus autores. Era uma época de censura e de condenações. No entanto, era também uma época de discussões e de pôr em causa velhos saberes. Tempo de G. Occam e do nominalismo, do florescimento da lógica e da nova física. Tempo também de espirituais, da contestação no seio da Igreja, da reivindicação de uma forma de vida evangélica inspirada na pobreza dos primeiros cristãos, de Cristo e dos apóstolos.
A posteridade tão diversificada, por vezes contraditória, desta escola - no campo da filosofia, da teologia, da espiritualidade e da mística - já começou a ser estudada por Alain de Libera, com muitas outras colaborações (2). Quais serão, porém, as razões da atracção que continua a exercer em novos estilos de espiritualidade e de teologia, no Oriente e no Ocidente?
(1) Alain de Libera, A Filosofia Medieval, Loyola, São Paulo, 1998, p. 397. (2) Alain de Libera, Eckhart, Suso, Tauler, ou la Divinisation de l"homme, Bayard, Paris, 1996; Id., Mestre Eckhart et la Mystique rhénane, Cerf, Paris, 1999.
Frei Bento - 07-02-2010
Com Eckhart, Suso e Tauler pela primeira vez teólogos profissionais falavam na língua dos leigos1. As Edições Paulinas abriram uma colecção designada "Sabedoria Cristã", permitindo ao cristianismo respirar a dois pulmões, como desejava João Paulo II: o da Igreja do Oriente e o da Igreja do Ocidente. Já saíram várias obras essenciais. A quarta é constituída pelos Tratados e Sermões de mestre Eckhart (1260-1328), com prefácio do prof. Paulo Borges e introdução de fr. José Luís de Almeida Monteiro, O.P. Com outro volume de Introdução a Mestre Eckhart, de Michael Demkovich, procura-se recuperar, ainda que tardiamente, a voz deste grande místico ignorado em Portugal.
O grande especialista do pensamento medieval, Alain de Libera (1) - que vou seguir neste texto - sustenta que a filosofia alemã, nos séculos XIII e XIV, estava inteiramente concentrada na Ordem dos Pregadores. Alberto Magno (falecido em 1280) era alemão por nascimento e carreira. As suas ideias, porém, eram parisienses. Os filósofos alemães eram discípulos de Alberto Magno, formados por ele, em Colónia, no Studium Dominicano ou dependentes das suas teses.
O mais famoso dos discípulos foi mestre Eckhart, filósofo, teólogo, místico e dotado de grande capacidade prática. Foi prior, provincial, vigário geral, professor na Sorbonne de Paris e em Colónia. É considerado o maior místico da Idade Média. A sua influência atravessou os séculos e as culturas, uma ponte entre o Ocidente e o Oriente. M. Heidegger aludia ao "velho mestre, de quem aprendemos a ler e a viver". Continua a marcar a sua presença nas investigações feministas, sufistas e budistas, nos seguidores da New Age e, com redobrado fascínio, entre escritores cristãos de várias tendências.
2.Este místico é também aclamado como "pai da especulação alemã". Foi condenado a 27 de Março de 1329 por um dos Papas de Avinhão, João XXII. Apesar de todas as censuras e reprovações, ler hoje mestre Eckhart é continuar a beber numa fonte de água viva. É também uma escola, pois Eckhart teve discípulos imediatos de grande envergadura: Henrique Suso e João Tauler. Com ele, legaram ao cristianismo uma das suas mais altas e exigentes expressões, uma teologia contemplativa e prática, cujas palavras-chave são a "deificação" e o "desprendimento", marcas da mística renana.
Durante uns 60 anos, no século XIV, no vale do Reno, na região de Colónia e de Estrasburgo, viveu, pregou, escreveu e meditou uma extraordinária geração de homens chamados "místicos renanos". Pertenciam os três - Eckhart, Suso e Tauler - à Ordem Dominicana. Eram intelectuais: Eckhart era o terceiro alemão com o título de "mestre em Teologia", pela Universidade de Paris, a maior distinção intelectual que se podia imaginar naquela época. Os outros eram seus alunos e discípulos. Entre 1300 e 1360, esses três irmãos mendicantes transformaram o modo de pensar e de viver o cristianismo, inventando um tipo de intelectual que o mundo medieval não tinha conhecido até então: o de "mestre de leitura" que fosse também, e em primeiro lugar, "mestre de vida".
3.Na Idade Média, sempre houve espirituais e sábios. Na época das universidades - a partir dos anos 1200 - existiam intelectuais, profissionais do pensamento, numa palavra, "clérigos". Com Eckhart, Suso e Tauler surge outra realidade. Pela primeira vez, teólogos profissionais pregavam, ensinavam e orientavam, falando na língua dos leigos, perante auditórios de não profissionais que ignoravam tanto a filosofia como a teologia sistemática. Popularizaram, ou, melhor dito, desprofissionalizaram a sabedoria cristã. Dirigiam-se ao mundo dos "simples".
Este novo destinatário do saber e da fé em busca de inteligência não era fruto de uma iniciativa pessoal, fazia parte da sua missão de irmãos pregadores. Tratava-se, sobretudo numa época de intensa vida religiosa, de conduzir um imenso mundo de mulheres, monjas ou beguinas, pelos caminhos da verdadeira doutrina. De facto, a espiritualidade feminina era, na altura, tão florescente que inquietava o magistério. A singularidade dos três pregadores consistiu em ter cumprido a sua função, colocando-se na escola do seu auditório, aprendendo com o seu contacto e aceitando e vivendo todas as suas consequências.
Era duro e sofredor o mundo em que viveram: o papado estava em guerra ideológica com o império; a peste começava a assolar a Alemanha; queimavam-se os livros e, por vezes, os seus autores. Era uma época de censura e de condenações. No entanto, era também uma época de discussões e de pôr em causa velhos saberes. Tempo de G. Occam e do nominalismo, do florescimento da lógica e da nova física. Tempo também de espirituais, da contestação no seio da Igreja, da reivindicação de uma forma de vida evangélica inspirada na pobreza dos primeiros cristãos, de Cristo e dos apóstolos.
A posteridade tão diversificada, por vezes contraditória, desta escola - no campo da filosofia, da teologia, da espiritualidade e da mística - já começou a ser estudada por Alain de Libera, com muitas outras colaborações (2). Quais serão, porém, as razões da atracção que continua a exercer em novos estilos de espiritualidade e de teologia, no Oriente e no Ocidente?
(1) Alain de Libera, A Filosofia Medieval, Loyola, São Paulo, 1998, p. 397. (2) Alain de Libera, Eckhart, Suso, Tauler, ou la Divinisation de l"homme, Bayard, Paris, 1996; Id., Mestre Eckhart et la Mystique rhénane, Cerf, Paris, 1999.