Para a Quaresma
Frei Bento - 14-02-2010
Não podemos exigir liberdade e pluralismo na Igreja e, depois, esperar que todos apreciem, positivamente, as nossas opções1.O padre Anselmo Borges transcreveu, no passado dia 6, no DN, o essencial da carta pessoal do jesuíta egípcio-libanês, Henri Boulad, de 78 anos, ao Papa Bento XVI, enviada, aliás, já em 2007. A partir dos finais de 2009, passou a ser conhecida e circula, agora, na Internet.
Partilhei com algumas pessoas a leitura integral da carta deste jesuíta, acerca da situação da Igreja a nível mundial e local. Como se costuma dizer, o estilo é o homem. Ele não deixou por mãos alheias a sua minuciosa apresentação. Supõe que o próprio Papa é seu leitor e ele um cordial leitor do Papa.
As reacções à leitura foram muito diversas. Factos são factos, mas sempre filtrados pelos olhos culturais e, neste caso, eclesiais de cada um. A sua valorização é sempre feita a partir do modo como cada um vê a missão da Igreja no mundo. Esta tem, hoje, uma referência incontornável: o acontecimento e os documentos do Vaticano II. No entanto, os pontos de vista de quem deseja regressar à situação anterior ao Concílio e de quem o deseja aplicar, segundo a forma como lê a situação actual do mundo e da Igreja, geram conflitos de interpretação e práticas muito contrastadas. É normal. Não podemos exigir liberdade e pluralismo na Igreja e, depois, esperar que todos apreciem, positivamente, as nossas opções.
Não se conhecem as reacções do Papa e da Cúria a esta carta privada tornada, agora, carta aberta. Há quem diga que, se Henri Boulad a pôs a circular no ano passado, foi porque Roma não lhe ligou. Resolveu ele próprio ampliar os seus destinatários. Seja como for, já lá vão três anos e dir-se-á que está tudo na mesma. Não acredito que este jesuíta fosse tão ingénuo que pensasse que iria, por meio de uma carta, alterar o rumo do pontificado de Bento XVI. Se ele julga conhecer bem a situação mundial da Igreja, não creio que o Papa esteja menos informado.
A carta tornou-se um testemunho aberto da forma como um cristão informado olha para a situação da Igreja nos diferentes países, para as decisões ou falta delas da parte do Vaticano, e como deseja ver alterada a sua situação. Ao torná-la pública, quer mostrar, como resumiu Oriol Domingo, no diário catalão La Vanguardia, que é urgente compreender que o chefe da Igreja universal não é o Papa, mas Jesus Cristo; que a Igreja católica não é o Vaticano nem unicamente latina e romana. É, por essência, múltipla, multiforme, plural e pluralista.
2.O rumo oficial da prática pastoral da Igreja não se mede, apenas, pelos documentos de pessoas e grupos de recorte seguidista ou crítico. A questão situa-se a nível das práticas pessoais, das instituições, das dioceses, das paróquias, dos movimentos e das congregações religiosas. Durante séculos, havia quem repetisse: "Fora da Igreja não há salvação." Foi preciso explicar o contexto concreto em que nasceu essa afirmação infeliz, que acabava por restringir o campo de acção de Cristo e de Deus! Agora, por razões compreensíveis, mas míopes, está a difundir-se, em alguns pastores, a ideia de que "fora da paróquia - ou do seu grupo - não há salvação".
Ao longo de muitos anos, em diversos países, colaborei com párocos que sabiam que a paróquia não era uma quinta privada. Tinham gosto na colaboração de todos - cada um e cada grupo com o seu carisma - para a edificação de uma comunidade una e plural. E não só. Sabiam que, por razões históricas, muitas pessoas eram intermitentes, na chamada prática religiosa. Reservavam, para essas pessoas, uma atenção especial - numa atitude fiel ao ensinamento da parábola do "filho pródigo" - que se reflectia na forma como essas pessoas eram acolhidas nos serviços paroquiais. Apoiavam, de bom grado, iniciativas e grupos que, também por razões históricas e más experiências, eram alérgicos a uma integração funcional na paróquia. Nos diversos mundos a que se refere a carta do Padre Henri Boulad, a situação de muitos cristãos tornou-se de autogestão. Seria um erro não atender à mecha que ainda fumega e, sobretudo, esquecer que a paróquia, que não é acolhedora, perde a sua vocação missionária tão apregoada e tão pouco praticada. Pelo que me dizem e por algumas experiências desagradáveis, nota-se que algum clero - e não do mais antigo - manifesta, pelo seu comportamento e pela invocação de ordens superiores, um gosto especial pela burocracia que afasta os que esperavam acolhimento.
3.Hoje, é Domingo Gordo. A próxima quarta-feira é chamada Quarta-feira de Cinzas, fim do Carnaval e começo da Quaresma. Dir-se-á que, no ano passado, já era assim, como se imperasse a lei do eterno retomo. É o contrário. Hoje mesmo, na Missa, é proclamado o sermão de Jesus sobre a arte de ser feliz - as chamadas Bem-Aventuranças -, a arte de transformar a vida. Não estamos condenados a viver na tristeza e nas lágrimas. A Quaresma é um período especialmente dedicado à revisão dos critérios que orientam, actualmente, a vida da Igreja. Se todos somos Igreja, é dedicado à revisão dos critérios de vida de nós todos.
Sem esta revisão, as Igrejas não podem contribuir para alterar a injustiça que domina a vida dos povos e as relações entre os povos, como lembra o Papa na sua Mensagem para esta Quaresma.
IN PÙBLICO
Frei Bento - 14-02-2010
Não podemos exigir liberdade e pluralismo na Igreja e, depois, esperar que todos apreciem, positivamente, as nossas opções1.O padre Anselmo Borges transcreveu, no passado dia 6, no DN, o essencial da carta pessoal do jesuíta egípcio-libanês, Henri Boulad, de 78 anos, ao Papa Bento XVI, enviada, aliás, já em 2007. A partir dos finais de 2009, passou a ser conhecida e circula, agora, na Internet.
Partilhei com algumas pessoas a leitura integral da carta deste jesuíta, acerca da situação da Igreja a nível mundial e local. Como se costuma dizer, o estilo é o homem. Ele não deixou por mãos alheias a sua minuciosa apresentação. Supõe que o próprio Papa é seu leitor e ele um cordial leitor do Papa.
As reacções à leitura foram muito diversas. Factos são factos, mas sempre filtrados pelos olhos culturais e, neste caso, eclesiais de cada um. A sua valorização é sempre feita a partir do modo como cada um vê a missão da Igreja no mundo. Esta tem, hoje, uma referência incontornável: o acontecimento e os documentos do Vaticano II. No entanto, os pontos de vista de quem deseja regressar à situação anterior ao Concílio e de quem o deseja aplicar, segundo a forma como lê a situação actual do mundo e da Igreja, geram conflitos de interpretação e práticas muito contrastadas. É normal. Não podemos exigir liberdade e pluralismo na Igreja e, depois, esperar que todos apreciem, positivamente, as nossas opções.
Não se conhecem as reacções do Papa e da Cúria a esta carta privada tornada, agora, carta aberta. Há quem diga que, se Henri Boulad a pôs a circular no ano passado, foi porque Roma não lhe ligou. Resolveu ele próprio ampliar os seus destinatários. Seja como for, já lá vão três anos e dir-se-á que está tudo na mesma. Não acredito que este jesuíta fosse tão ingénuo que pensasse que iria, por meio de uma carta, alterar o rumo do pontificado de Bento XVI. Se ele julga conhecer bem a situação mundial da Igreja, não creio que o Papa esteja menos informado.
A carta tornou-se um testemunho aberto da forma como um cristão informado olha para a situação da Igreja nos diferentes países, para as decisões ou falta delas da parte do Vaticano, e como deseja ver alterada a sua situação. Ao torná-la pública, quer mostrar, como resumiu Oriol Domingo, no diário catalão La Vanguardia, que é urgente compreender que o chefe da Igreja universal não é o Papa, mas Jesus Cristo; que a Igreja católica não é o Vaticano nem unicamente latina e romana. É, por essência, múltipla, multiforme, plural e pluralista.
2.O rumo oficial da prática pastoral da Igreja não se mede, apenas, pelos documentos de pessoas e grupos de recorte seguidista ou crítico. A questão situa-se a nível das práticas pessoais, das instituições, das dioceses, das paróquias, dos movimentos e das congregações religiosas. Durante séculos, havia quem repetisse: "Fora da Igreja não há salvação." Foi preciso explicar o contexto concreto em que nasceu essa afirmação infeliz, que acabava por restringir o campo de acção de Cristo e de Deus! Agora, por razões compreensíveis, mas míopes, está a difundir-se, em alguns pastores, a ideia de que "fora da paróquia - ou do seu grupo - não há salvação".
Ao longo de muitos anos, em diversos países, colaborei com párocos que sabiam que a paróquia não era uma quinta privada. Tinham gosto na colaboração de todos - cada um e cada grupo com o seu carisma - para a edificação de uma comunidade una e plural. E não só. Sabiam que, por razões históricas, muitas pessoas eram intermitentes, na chamada prática religiosa. Reservavam, para essas pessoas, uma atenção especial - numa atitude fiel ao ensinamento da parábola do "filho pródigo" - que se reflectia na forma como essas pessoas eram acolhidas nos serviços paroquiais. Apoiavam, de bom grado, iniciativas e grupos que, também por razões históricas e más experiências, eram alérgicos a uma integração funcional na paróquia. Nos diversos mundos a que se refere a carta do Padre Henri Boulad, a situação de muitos cristãos tornou-se de autogestão. Seria um erro não atender à mecha que ainda fumega e, sobretudo, esquecer que a paróquia, que não é acolhedora, perde a sua vocação missionária tão apregoada e tão pouco praticada. Pelo que me dizem e por algumas experiências desagradáveis, nota-se que algum clero - e não do mais antigo - manifesta, pelo seu comportamento e pela invocação de ordens superiores, um gosto especial pela burocracia que afasta os que esperavam acolhimento.
3.Hoje, é Domingo Gordo. A próxima quarta-feira é chamada Quarta-feira de Cinzas, fim do Carnaval e começo da Quaresma. Dir-se-á que, no ano passado, já era assim, como se imperasse a lei do eterno retomo. É o contrário. Hoje mesmo, na Missa, é proclamado o sermão de Jesus sobre a arte de ser feliz - as chamadas Bem-Aventuranças -, a arte de transformar a vida. Não estamos condenados a viver na tristeza e nas lágrimas. A Quaresma é um período especialmente dedicado à revisão dos critérios que orientam, actualmente, a vida da Igreja. Se todos somos Igreja, é dedicado à revisão dos critérios de vida de nós todos.
Sem esta revisão, as Igrejas não podem contribuir para alterar a injustiça que domina a vida dos povos e as relações entre os povos, como lembra o Papa na sua Mensagem para esta Quaresma.
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