Divindade impessoal e o Deus pessoal
É frequente ouvir pessoas que se afirmam cristãs dizerem: sim, eu acredito, "ele há qualquer coisa de superior que nos governa". Pergunta-se: essas pessoas acreditam no Deus cristão? Realmente não, já que, na perspectiva cristã, Deus é invocável, da ordem do pessoal e não do impessoal.
É certo que muitos cientistas e filósofos afirmam a natureza como força geradora divina de tudo quanto há e ainda aberta a novas possibilidades no futuro. Há um texto recente do filósofo Marcel Conche que resume bem esta concepção. Para ele, Deus é inútil, precisamente porque a natureza cria seres que podem ter ideias de todas as coisas, até da própria natureza. Não se trata, porém, da "natureza oposta ao espírito ou à história ou à cultura ou à liberdade, mas da natureza omni-englobante, a physis grega, que inclui nela o Homem. Essa é a Causa dos seres pensantes no seu efeito".
Esta concepção vê-se confrontada com duas objecções fundamentais. A primeira é que, acabando por, de uma forma ou outra, divinizar a natureza, põe em causa a secularização e, consequentemente, a liberdade do Homem. Por outro lado, não se percebe como é que, sendo a natureza da ordem do impessoal, dá origem à pessoa, como é que mecanismos da evolução, que são da ordem da terceira pessoa, do isso, resultam no aparecimento da pessoa, que se vive a si mesma na primeira pessoa, como um eu irredutível.
A questão é extremamente complexa, pois a atribuição de carácter pessoal a Deus também se vê confrontada com dificuldades temíveis. Não há, nesta perspectiva, o perigo de finitizar Deus? De facto, a pessoa parece limitativa: eu não sou tu. Mas, por outro lado, um Deus ao qual o crente não pudesse de algum modo dirigir-se como tu pessoal, poderia salvar alguém precisamente enquanto pessoa? Ainda seria um Deus salvador?
É evidente que Deus não pode ser conhecido à maneira de objecto: "se compreendes, não é Deus", como viu Santo Agostinho. O Concílio de Latrão IV chamou a atenção para o facto de entre o Criador e a criatura, dentro da semelhança, a dissemelhança ser sempre maior. Mas, por outro lado, se Deus se apresenta como o Incomensurável, o Inabarcável, o Inefável, o Insondável, a Realidade Primeiríssima e Ultimíssima, não estamos já a fazer afirmações sobre ele, dizendo que ele é o que está para lá de todo o dizível, 'conhecendo-o', portanto, como o incognoscível?
A união mística com Deus não implica precisamente a alteridade pessoal de Deus? O que os místicos vivem é, na sua radicalidade, o Mistério e Presença divina enquanto Origem criadora do real e, assim, Alteridade. Deus nem se identifica com o mundo nem é separado do mundo: no mundo, é transcendente ao mundo. Como disse também Santo Agostinho: Deus é "intimior intimo meo, superior summo meo" (mais íntimo que a minha intimidade mais radical, mais alto que a minha mais elevada altura). Sem essa alteridade, como seria possível a experiência mais funda da religião precisamente enquanto religação e união mística?
Na gaguez quase muda, de Deus só se pode balbuciar algo por cifras, imagens, metáforas, símbolos, afirmando e, depois, negando. Como se passa do finito ao Infinito? Mas o decisivo, aqui, é se Deus é invocável ou não, Alguém a quem o crente se pode dirigir. Então, é evidente que Deus não é pessoa à maneira das pessoas humanas, um Super-objecto ou um Super-homem. Mas Deus também não é um Isso, uma Coisa. Como escreve Hans Küng, "Deus, que possibilita o devir da pessoa, transcende o conceito do impessoal: não é menos do que pessoa". Sem esquecer que Deus é e permanece o Inabarcável e Indefinível, pode dizer-se que é "transpessoal".
Não há incompatibilidade entre a soberania absoluta de Deus e a autonomia das criaturas. Transcendência divina criadora e liberdade humana implicam-se mutuamente. É que, como escreveu Sören Kierkegaard, "só a omnipotência pode retomar-se a si mesma enquanto se dá, e esta relação constitui precisamente a independência de quem recebe".
É frequente ouvir pessoas que se afirmam cristãs dizerem: sim, eu acredito, "ele há qualquer coisa de superior que nos governa". Pergunta-se: essas pessoas acreditam no Deus cristão? Realmente não, já que, na perspectiva cristã, Deus é invocável, da ordem do pessoal e não do impessoal.
É certo que muitos cientistas e filósofos afirmam a natureza como força geradora divina de tudo quanto há e ainda aberta a novas possibilidades no futuro. Há um texto recente do filósofo Marcel Conche que resume bem esta concepção. Para ele, Deus é inútil, precisamente porque a natureza cria seres que podem ter ideias de todas as coisas, até da própria natureza. Não se trata, porém, da "natureza oposta ao espírito ou à história ou à cultura ou à liberdade, mas da natureza omni-englobante, a physis grega, que inclui nela o Homem. Essa é a Causa dos seres pensantes no seu efeito".
Esta concepção vê-se confrontada com duas objecções fundamentais. A primeira é que, acabando por, de uma forma ou outra, divinizar a natureza, põe em causa a secularização e, consequentemente, a liberdade do Homem. Por outro lado, não se percebe como é que, sendo a natureza da ordem do impessoal, dá origem à pessoa, como é que mecanismos da evolução, que são da ordem da terceira pessoa, do isso, resultam no aparecimento da pessoa, que se vive a si mesma na primeira pessoa, como um eu irredutível.
A questão é extremamente complexa, pois a atribuição de carácter pessoal a Deus também se vê confrontada com dificuldades temíveis. Não há, nesta perspectiva, o perigo de finitizar Deus? De facto, a pessoa parece limitativa: eu não sou tu. Mas, por outro lado, um Deus ao qual o crente não pudesse de algum modo dirigir-se como tu pessoal, poderia salvar alguém precisamente enquanto pessoa? Ainda seria um Deus salvador?
É evidente que Deus não pode ser conhecido à maneira de objecto: "se compreendes, não é Deus", como viu Santo Agostinho. O Concílio de Latrão IV chamou a atenção para o facto de entre o Criador e a criatura, dentro da semelhança, a dissemelhança ser sempre maior. Mas, por outro lado, se Deus se apresenta como o Incomensurável, o Inabarcável, o Inefável, o Insondável, a Realidade Primeiríssima e Ultimíssima, não estamos já a fazer afirmações sobre ele, dizendo que ele é o que está para lá de todo o dizível, 'conhecendo-o', portanto, como o incognoscível?
A união mística com Deus não implica precisamente a alteridade pessoal de Deus? O que os místicos vivem é, na sua radicalidade, o Mistério e Presença divina enquanto Origem criadora do real e, assim, Alteridade. Deus nem se identifica com o mundo nem é separado do mundo: no mundo, é transcendente ao mundo. Como disse também Santo Agostinho: Deus é "intimior intimo meo, superior summo meo" (mais íntimo que a minha intimidade mais radical, mais alto que a minha mais elevada altura). Sem essa alteridade, como seria possível a experiência mais funda da religião precisamente enquanto religação e união mística?
Na gaguez quase muda, de Deus só se pode balbuciar algo por cifras, imagens, metáforas, símbolos, afirmando e, depois, negando. Como se passa do finito ao Infinito? Mas o decisivo, aqui, é se Deus é invocável ou não, Alguém a quem o crente se pode dirigir. Então, é evidente que Deus não é pessoa à maneira das pessoas humanas, um Super-objecto ou um Super-homem. Mas Deus também não é um Isso, uma Coisa. Como escreve Hans Küng, "Deus, que possibilita o devir da pessoa, transcende o conceito do impessoal: não é menos do que pessoa". Sem esquecer que Deus é e permanece o Inabarcável e Indefinível, pode dizer-se que é "transpessoal".
Não há incompatibilidade entre a soberania absoluta de Deus e a autonomia das criaturas. Transcendência divina criadora e liberdade humana implicam-se mutuamente. É que, como escreveu Sören Kierkegaard, "só a omnipotência pode retomar-se a si mesma enquanto se dá, e esta relação constitui precisamente a independência de quem recebe".