Cristãos de aviário?
Frei Bento Domingues - 18-07-2010
Que não pode haver "cristãos de aviário" é o próprio ritual do baptismo da criança que o dizApresentaram-me, há dias, um católico fervoroso de uma maneira curiosa: "Este não é um cristão de aviário; foi ele que pediu, aos 35 anos, para ser baptizado." Não achei nada de estranho.
No começo do cristianismo, o baptismo nasceu para celebrar a conversão de milhares de adultos. É, ainda hoje, a prática corrente em muitos países. Mesmo na velha Europa, incluindo Portugal, por motivos e caminhos muito diversos, o baptismo já não é só pedido para crianças.
Em caso nenhum, porém, se pode falar de cristãos de aviário. Tertuliano (155-222), um tunisino convertido, o primeiro grande intelectual cristão, cunhou uma fórmula exemplar: "Ninguém nasce cristão, torna-se cristão." Mesmo aqueles que recebem o baptismo em criança celebram o começo de uma caminhada, não o de uma fatalidade.
O termo português "baptismo" é a transliteração do grego "baptismõ" e significa "banho", associado aos verbos "mergulhar", "lavar", "derramar". A partir dessa realidade empírica e simbólica assumiu, no plano religioso, o sentido de purificação e de nova vida.
A grande dificuldade, no próprio imaginário de muitas iniciações ao baptismo cristão, consiste em tomar como seu antecedente directo o baptismo que João ministrou a Jesus no rio Jordão.
É verdade que Jesus de Nazaré levou, como homem, muito tempo a encontrar o seu próprio caminho e a sua missão. Foi discípulo de João Baptista, de quem nunca disse mal, antes o elogiou como a ninguém, mas desligou-se dele e escolheu outro género de vida. O que marcou a originalidade de Jesus não foi o baptismo de João. Qual terá sido, então, a experiência que o fez romper com esse grande profeta?
S. Lucas - assim como os outros evangelistas -contam o que se passou: tendo Jesus sido baptizado, e estando em oração, o Céu rasgou-se; o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. Do Céu veio uma voz: "Tu és o meu Filho muito amado; em ti me comprazo" (Lc 3, 21-22).
Foi esta experiência mística, foi este banho de Espírito Santo, que alterou o rumo da sua vida. É a partir daqui que se pode falar de antes e depois de Cristo. Lucas vai dizê-lo, de forma explícita: "A Lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus." O IV Evangelho ainda é mais incisivo: "A Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo" (Jo 1, 15-34).
2. As Igrejas de Jesus Cristo ressuscitado são fruto do Pentecostes. Pelo menos, é assim que são apresentadas, de muitas maneiras, pelos Actos dos Apóstolos. Os primeiros convertidos perguntaram a Pedro e aos apóstolos: "Irmãos, que devemos fazer?" A resposta já resume, sem dúvida, práticas simbólicas das comunidades cristãs: "Convertei-vos e seja cada um de vós baptizado em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos pecados e recebereis, então, o dom do Espírito Santo" (Act 2, 37-38). Um ritual é um programa de acção simbólica. Deus, porém, não está dependente dos rituais. Estes não são a única forma da sua actuação, não têm o exclusivo da sua graça. Nos capítulos 10 e 11, conta-se que, sem ritual nenhum, enquanto Pedro falava, o Espírito Santo - sem lhe pedir licença - caiu sobre todos os que ouviam a palavra e concluiu com muito bom senso: "Pode-se porventura recusar a água do baptismo a esses que, como nós, receberam o Espírito Santo?" Este desembaraço, em Cesareia, criou-lhe muitos problemas, em Jerusalém, onde foi obrigado a justificar-se perante judeus circuncisos, que não admitiam que o Espírito de Deus andasse à solta entre os pagãos. Convém não esquecer que antes, durante e depois da acção ritual é em Deus que vivemos, nos movemos e existimos. As acções simbólicas não existem para provocar a acção de Deus, mas para nos abrirmos à sua intervenção. Para justificar os sacramentos, temos a tendência em restringir a acção de Deus, anexando-a aos rituais, esquecendo que somos nós, seres simbólicos por natureza, que precisamos dessas mediações, que não podem encurtar a divina liberdade.
3. Consta de uma homilia de S. Gregório, bispo de Nisa (século IV), a seguinte oração baptismal: "Eu te marco em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que sejas cristão: os olhos, para que vejas a luz de Deus; os ouvidos, para que ouças a voz do Senhor; o nariz, para que percebas o suave odor de Cristo; os lábios, para que, uma vez convertido, confesses o Pai, o Filho e o Espírito Santo; o coração, para que creias na Trindade indissolúvel. O Verbo santificou-nos, o Espírito marcou-nos; o homem novo saiu ao mundo encontrando de novo a sua juventude pela graça."
Que não pode haver "cristãos de aviário" é o próprio ritual do baptismo da criança que o diz. Os pais e padrinhos comprometem-se a realizar um programa de educação, em liberdade, num mundo em transformação. Se proclamam que não vale tudo, é preciso não se deixar enganar pelas seduções do mal sempre com novos rostos. Sem a descoberta permanente de Cristo, como fonte de sentido, de beleza, de responsabilidade e sem a força da sua graça, é impossível ser fiel a esse programa numa vida em devir.
in Público
Frei Bento Domingues - 18-07-2010
Que não pode haver "cristãos de aviário" é o próprio ritual do baptismo da criança que o dizApresentaram-me, há dias, um católico fervoroso de uma maneira curiosa: "Este não é um cristão de aviário; foi ele que pediu, aos 35 anos, para ser baptizado." Não achei nada de estranho.
No começo do cristianismo, o baptismo nasceu para celebrar a conversão de milhares de adultos. É, ainda hoje, a prática corrente em muitos países. Mesmo na velha Europa, incluindo Portugal, por motivos e caminhos muito diversos, o baptismo já não é só pedido para crianças.
Em caso nenhum, porém, se pode falar de cristãos de aviário. Tertuliano (155-222), um tunisino convertido, o primeiro grande intelectual cristão, cunhou uma fórmula exemplar: "Ninguém nasce cristão, torna-se cristão." Mesmo aqueles que recebem o baptismo em criança celebram o começo de uma caminhada, não o de uma fatalidade.
O termo português "baptismo" é a transliteração do grego "baptismõ" e significa "banho", associado aos verbos "mergulhar", "lavar", "derramar". A partir dessa realidade empírica e simbólica assumiu, no plano religioso, o sentido de purificação e de nova vida.
A grande dificuldade, no próprio imaginário de muitas iniciações ao baptismo cristão, consiste em tomar como seu antecedente directo o baptismo que João ministrou a Jesus no rio Jordão.
É verdade que Jesus de Nazaré levou, como homem, muito tempo a encontrar o seu próprio caminho e a sua missão. Foi discípulo de João Baptista, de quem nunca disse mal, antes o elogiou como a ninguém, mas desligou-se dele e escolheu outro género de vida. O que marcou a originalidade de Jesus não foi o baptismo de João. Qual terá sido, então, a experiência que o fez romper com esse grande profeta?
S. Lucas - assim como os outros evangelistas -contam o que se passou: tendo Jesus sido baptizado, e estando em oração, o Céu rasgou-se; o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. Do Céu veio uma voz: "Tu és o meu Filho muito amado; em ti me comprazo" (Lc 3, 21-22).
Foi esta experiência mística, foi este banho de Espírito Santo, que alterou o rumo da sua vida. É a partir daqui que se pode falar de antes e depois de Cristo. Lucas vai dizê-lo, de forma explícita: "A Lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus." O IV Evangelho ainda é mais incisivo: "A Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo" (Jo 1, 15-34).
2. As Igrejas de Jesus Cristo ressuscitado são fruto do Pentecostes. Pelo menos, é assim que são apresentadas, de muitas maneiras, pelos Actos dos Apóstolos. Os primeiros convertidos perguntaram a Pedro e aos apóstolos: "Irmãos, que devemos fazer?" A resposta já resume, sem dúvida, práticas simbólicas das comunidades cristãs: "Convertei-vos e seja cada um de vós baptizado em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos pecados e recebereis, então, o dom do Espírito Santo" (Act 2, 37-38). Um ritual é um programa de acção simbólica. Deus, porém, não está dependente dos rituais. Estes não são a única forma da sua actuação, não têm o exclusivo da sua graça. Nos capítulos 10 e 11, conta-se que, sem ritual nenhum, enquanto Pedro falava, o Espírito Santo - sem lhe pedir licença - caiu sobre todos os que ouviam a palavra e concluiu com muito bom senso: "Pode-se porventura recusar a água do baptismo a esses que, como nós, receberam o Espírito Santo?" Este desembaraço, em Cesareia, criou-lhe muitos problemas, em Jerusalém, onde foi obrigado a justificar-se perante judeus circuncisos, que não admitiam que o Espírito de Deus andasse à solta entre os pagãos. Convém não esquecer que antes, durante e depois da acção ritual é em Deus que vivemos, nos movemos e existimos. As acções simbólicas não existem para provocar a acção de Deus, mas para nos abrirmos à sua intervenção. Para justificar os sacramentos, temos a tendência em restringir a acção de Deus, anexando-a aos rituais, esquecendo que somos nós, seres simbólicos por natureza, que precisamos dessas mediações, que não podem encurtar a divina liberdade.
3. Consta de uma homilia de S. Gregório, bispo de Nisa (século IV), a seguinte oração baptismal: "Eu te marco em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que sejas cristão: os olhos, para que vejas a luz de Deus; os ouvidos, para que ouças a voz do Senhor; o nariz, para que percebas o suave odor de Cristo; os lábios, para que, uma vez convertido, confesses o Pai, o Filho e o Espírito Santo; o coração, para que creias na Trindade indissolúvel. O Verbo santificou-nos, o Espírito marcou-nos; o homem novo saiu ao mundo encontrando de novo a sua juventude pela graça."
Que não pode haver "cristãos de aviário" é o próprio ritual do baptismo da criança que o diz. Os pais e padrinhos comprometem-se a realizar um programa de educação, em liberdade, num mundo em transformação. Se proclamam que não vale tudo, é preciso não se deixar enganar pelas seduções do mal sempre com novos rostos. Sem a descoberta permanente de Cristo, como fonte de sentido, de beleza, de responsabilidade e sem a força da sua graça, é impossível ser fiel a esse programa numa vida em devir.
in Público