Não fujam. Escutem
09.11.2008, Frei Bento Domingues, O.P.
Não fujam, procurem, em tudo, discernir o que é bom. É essa a proposta do primeiro escrito cristão
1.Estamos na oitava dos "Fiéis Defuntos". Gosto da irritação de Jacques Maritain, filósofo católico de ascendência judaica: "Escandaliza-me o modo como os cristãos se referem aos seus defuntos. Chamam-lhes mortos; não foram capazes de renovar o pobre vocabulário humano sobre um ponto que atinge dons essenciais da fé. Mortos! Poder-se-á assistir a uma Missa pelos mortos? Vai-se ao cemitério levar flores aos mortos? Reza-se pelos mortos? Como se eles não fossem mil vezes mais vivos do que nós!... Os que deixaram esta terra para entrar no outro mundo não estão mortos. Se estão no céu, vêem Deus. São os vivos por excelência. Se estão no purgatório, sofrem, mas com a certeza que verão a Deus. Devido a esta certeza, estão muito mais vivos do que nós..."
J. Maritain tem toda a razão, mas nem ele consegue descolar de um conjunto de enganosas metáforas geográficas. Prefiro Santo Agostinho: "Os mortos não estão ausentes. Estão invisíveis. Têm os olhos cheios de luz, fixos nos nossos cheios de lágrimas."
É a impossibilidade da comunicação recíproca que nos testemunha a morte, mas, para nós, só ficarão mortos aqueles que esquecermos. Por isso, sem um Deus de puro amor não haverá memória redentora para todos e para sempre. Foi o que tentei dizer no domingo passado.
2.Recebi, no entanto, um reparo bem áspero: "Deixe-se de mortos e cuide dos que, hoje, vivem mal." Esta observação não se inscreve, apenas, numa crítica à religião - que já vem do século XIX e percorreu o século XX - enquanto alienação intelectual, antropológica, psíquica e socioeconómica. A uma religião sem mundo parecia suceder um mundo sem religião. Era uma nova crença: na medida em que se forem resolvendo, de forma científica e técnica, os nossos problemas mais palpáveis, as religiões irão perdendo terreno e acabarão por desaparecer.
A crítica mais certeira das falsas devoções veio, porém, do interior da própria religião, de alguns profetas do antigo Israel que Jesus Cristo radicalizou. Quem beber nessa Fonte e se aquecer a esse Lume será sempre confrontado com a mesma pergunta: "Que fizeste do teu irmão?"
Quando nos referimos às religiões, pensamos, de imediato, em sistemas culturais e simbólicos, em credos, em dogmas, em ritos, em organizações mais ou menos hierarquizadas e em normas morais. Ao dizer isto, devemos ter cuidado, pois as religiões são diversas, multifuncionais e podem ser utilizadas para o melhor e para o pior: para fazer a paz e para fazer a guerra; para manter a concórdia e suscitar a revolta.
A própria etimologia da palavra religião tanto pode vir de "religar" o humano e o divino e os membros de uma comunidade, como de "reler", reconsiderar, observar cuidadosamente as formas e as fórmulas que mantêm a separação do sagrado e do profano. Sob este ponto de vista, o contrário de religião é a negligência, a distracção, a falta de regras para manter o sagrado e o profano nos seus respectivos lugares.
A primeira etimologia evoca um universo integrado. A segunda é tentada pelo ritualismo e até pelo fanatismo. Daí, a saborosa adivinha eclesiástica: qual a diferença entre um terrorista e um liturgista? Com o terrorista é possível negociar. Com o liturgista, nunca.
3.Por causa de usos e abusos de práticas rituais e de imposições dogmáticas, há pessoas, profundamente religiosas, que preferem caminhos de meditação, de espiritualidade, de mística, em regime de isolamento ou de peregrinação. Quando, porém, se foge de manifestações exteriores, pode-se cair num intimismo alheio às questões da sociedade. Ao evitar o ritualismo e o dogmatismo, não se deve esquecer que a ritualidade faz parte do ser humano e que precisa de articular convicções em constante aprofundamento. A grande questão é esta: como alimentar a qualidade estética, a exigência ética, a profundidade contemplativa e a clarividência profética nas celebrações da fé cristã?
Pode-se dizer, com razão, que as celebrações da Eucaristia - isto pode ser extensivo a todos os sacramentos - têm uma estrutura que permite articular palavra, silêncio, gesto, imagem, música, interpretação, relação entre quotidiano e festa, profundidade espiritual e intervenção profética, vencendo o reino das aparências, sem resvalar para o esotérico ou para o comício.
Dizer isto não é difícil. No entanto, para promover todas essas dimensões com autenticidade, seria preciso, nas paróquias e nos movimentos, conceber e realizar programas que saibam unir formas de vida e de expressão que há muito tempo andam divorciadas. Esta é uma das tarefas primordiais da Igreja.
Dir-se-á que os verdadeiros problemas de hoje dizem respeito ao genoma humano, aos organismos geneticamente modificados, à identidade sexual, às novas formas de viver em comum, à clonagem, à globalização, à regulação financeira e das telecomunicações, etc. A Igreja católica não vive ausente de toda essa nova problemática cultural que também faz parte do seu corpo. Precisa, no entanto, de escutar a voz do Espírito. É essa, aliás, a proposta do primeiro escrito cristão: não fujam, procurem, em tudo, discernir o que é bom (1 Ts 5, 19-21).
[i]n Público
09.11.2008, Frei Bento Domingues, O.P.
Não fujam, procurem, em tudo, discernir o que é bom. É essa a proposta do primeiro escrito cristão
1.Estamos na oitava dos "Fiéis Defuntos". Gosto da irritação de Jacques Maritain, filósofo católico de ascendência judaica: "Escandaliza-me o modo como os cristãos se referem aos seus defuntos. Chamam-lhes mortos; não foram capazes de renovar o pobre vocabulário humano sobre um ponto que atinge dons essenciais da fé. Mortos! Poder-se-á assistir a uma Missa pelos mortos? Vai-se ao cemitério levar flores aos mortos? Reza-se pelos mortos? Como se eles não fossem mil vezes mais vivos do que nós!... Os que deixaram esta terra para entrar no outro mundo não estão mortos. Se estão no céu, vêem Deus. São os vivos por excelência. Se estão no purgatório, sofrem, mas com a certeza que verão a Deus. Devido a esta certeza, estão muito mais vivos do que nós..."
J. Maritain tem toda a razão, mas nem ele consegue descolar de um conjunto de enganosas metáforas geográficas. Prefiro Santo Agostinho: "Os mortos não estão ausentes. Estão invisíveis. Têm os olhos cheios de luz, fixos nos nossos cheios de lágrimas."
É a impossibilidade da comunicação recíproca que nos testemunha a morte, mas, para nós, só ficarão mortos aqueles que esquecermos. Por isso, sem um Deus de puro amor não haverá memória redentora para todos e para sempre. Foi o que tentei dizer no domingo passado.
2.Recebi, no entanto, um reparo bem áspero: "Deixe-se de mortos e cuide dos que, hoje, vivem mal." Esta observação não se inscreve, apenas, numa crítica à religião - que já vem do século XIX e percorreu o século XX - enquanto alienação intelectual, antropológica, psíquica e socioeconómica. A uma religião sem mundo parecia suceder um mundo sem religião. Era uma nova crença: na medida em que se forem resolvendo, de forma científica e técnica, os nossos problemas mais palpáveis, as religiões irão perdendo terreno e acabarão por desaparecer.
A crítica mais certeira das falsas devoções veio, porém, do interior da própria religião, de alguns profetas do antigo Israel que Jesus Cristo radicalizou. Quem beber nessa Fonte e se aquecer a esse Lume será sempre confrontado com a mesma pergunta: "Que fizeste do teu irmão?"
Quando nos referimos às religiões, pensamos, de imediato, em sistemas culturais e simbólicos, em credos, em dogmas, em ritos, em organizações mais ou menos hierarquizadas e em normas morais. Ao dizer isto, devemos ter cuidado, pois as religiões são diversas, multifuncionais e podem ser utilizadas para o melhor e para o pior: para fazer a paz e para fazer a guerra; para manter a concórdia e suscitar a revolta.
A própria etimologia da palavra religião tanto pode vir de "religar" o humano e o divino e os membros de uma comunidade, como de "reler", reconsiderar, observar cuidadosamente as formas e as fórmulas que mantêm a separação do sagrado e do profano. Sob este ponto de vista, o contrário de religião é a negligência, a distracção, a falta de regras para manter o sagrado e o profano nos seus respectivos lugares.
A primeira etimologia evoca um universo integrado. A segunda é tentada pelo ritualismo e até pelo fanatismo. Daí, a saborosa adivinha eclesiástica: qual a diferença entre um terrorista e um liturgista? Com o terrorista é possível negociar. Com o liturgista, nunca.
3.Por causa de usos e abusos de práticas rituais e de imposições dogmáticas, há pessoas, profundamente religiosas, que preferem caminhos de meditação, de espiritualidade, de mística, em regime de isolamento ou de peregrinação. Quando, porém, se foge de manifestações exteriores, pode-se cair num intimismo alheio às questões da sociedade. Ao evitar o ritualismo e o dogmatismo, não se deve esquecer que a ritualidade faz parte do ser humano e que precisa de articular convicções em constante aprofundamento. A grande questão é esta: como alimentar a qualidade estética, a exigência ética, a profundidade contemplativa e a clarividência profética nas celebrações da fé cristã?
Pode-se dizer, com razão, que as celebrações da Eucaristia - isto pode ser extensivo a todos os sacramentos - têm uma estrutura que permite articular palavra, silêncio, gesto, imagem, música, interpretação, relação entre quotidiano e festa, profundidade espiritual e intervenção profética, vencendo o reino das aparências, sem resvalar para o esotérico ou para o comício.
Dizer isto não é difícil. No entanto, para promover todas essas dimensões com autenticidade, seria preciso, nas paróquias e nos movimentos, conceber e realizar programas que saibam unir formas de vida e de expressão que há muito tempo andam divorciadas. Esta é uma das tarefas primordiais da Igreja.
Dir-se-á que os verdadeiros problemas de hoje dizem respeito ao genoma humano, aos organismos geneticamente modificados, à identidade sexual, às novas formas de viver em comum, à clonagem, à globalização, à regulação financeira e das telecomunicações, etc. A Igreja católica não vive ausente de toda essa nova problemática cultural que também faz parte do seu corpo. Precisa, no entanto, de escutar a voz do Espírito. É essa, aliás, a proposta do primeiro escrito cristão: não fujam, procurem, em tudo, discernir o que é bom (1 Ts 5, 19-21).
[i]n Público