Leituras de férias
Frei Bento - 25-07-2010
A reflexão teológica move-se no interior do mistério que pode ser comunicado1.Se não pode haver "cristãos de aviário", como se tentou mostrar no domingo passado, é porque se supõe uma mútua fecundação entre a evolução cultural e a progressiva inteligência afectiva da fé ao longo da vida. Talvez seja também a melhor vacina contra as tentações da pseudo-ortodoxia fundamentalista. Este caminho vai-se construindo de forma elementar na catequese e, de modo mais elaborado, na reflexão teológica. Não apenas através de razões explicativas, mas entrando no jogo das imagens, dos símbolos, das figuras, das linguagens, em todas as expressões da cultura.
Este percurso não se faz de forma intemporal, alheio às conjunturas e aos condicionamentos da história, onde surgem todas as provocações à fé cristã e a fé se deve tornar provocante. Não se trata de uma cedência ao relativismo, mas à verdade que se vai descobrindo e elaborando pouco a pouco e segundo desafios imprevisíveis. Daí, a importância de estar atento às surpresas da linguagem dos "sinais dos tempos".
A reflexão teológica não é provocada, como a ciência moderna, por enigmas, por aquilo que ainda não sabemos, mas que pode vir a ser analisado e explicado. Move-se no interior do mistério que excede a ordem da conceitualização, mas que pode ser comunicado, nomeadamente, no mundo da liturgia e dos sacramentos. Estes são dons da fé, da esperança e do amor oferecidos em matérias sensíveis, na ordem da metáfora e do símbolo. Não é por acaso que, tanto no paganismo, como, depois, no cristianismo, se fala de "iniciação aos mistérios".
E preciso ter isto em conta na chamada "pastoral dos sacramentos", a começar pela do Baptismo, seja de adultos seja de crianças. Para não se cair no caos ou em flutuações subjectivistas, são indispensáveis orientações e medidas estabelecidas pelo Direito Canónico, pelas dioceses e pelas paróquias. Uma certa mentalidade julga que, satisfeitas essas exigências jurídicas e disciplinares, está tudo resolvido, esquecendo que essas condições não ultrapassam muito a realização exterior, formal, das celebrações sacramentais. Se ficarmos por aí, a vida dos sacramentos e da sua inteligência não crescerá no próprio crescimento das pessoas, que passam por muitas fases ao longo da existência.
2. Já me referi várias vezes, nestas crónicas, a Timothy Radcliffe, ex-mestre geral da Ordem Dominicana, professor em Oxford, andarilho do mundo e autor de várias obras de reflexão sobre os confrontos do Evangelho com a vida contemporânea. Recebeu, da Igreja Anglicana, o Prémio Michael Ramsey pelo seu livro, What is the point of being a Christian?, cuja edição portuguesa está em preparação nas Edições Paulinas. Estas já publicaram As sete Últimas Palavras e acaba de sair sobre a Eucaristia uma obra de alta qualidade teológica e cheia de humor: Ir à Igreja Porquê?
Começa assim: "Certo domingo, a mãe acordou o filho com uma sacudidela e disse-lhe que estava na hora de ir para a igreja. Sem resultado. Dez minutos mais tarde, insistiu: - Sai imediatamente da cama e vai para a igreja. - Ó mãe, não me apetece! É tão aborrecido! Porque é que hei-de chatear-me? - Por duas razões: sabes muito bem que deves ir à igreja ao domingo e, em segundo lugar, és o bispo da diocese.
"Não são apenas os bispos que, por vezes, não têm desejo de ir à igreja. Há inquéritos que mostram que uma grande percentagem das pessoas, no Ocidente, acredita em Deus, mas a frequência do culto dominical está a cair a pique. Estão mais interessadas na espiritualidade do que na religião institucional. Dizem sim a Jesus, mas dizem não à Igreja."
3. Como afirma o próprio autor, a Eucaristia representa o drama fundamental de toda a existência humana. Um drama em três actos. Forma-nos como pessoas que crêem, esperam e têm caridade. Estas virtudes são chamadas, habitualmente, virtudes teologais. São teologais, porque constituem uma participação na vida de Deus. A fé, a esperança e a caridade são modos de Deus fazer em nós a sua morada, e de, em Deus, nós estarmos em casa. São virtudes, porque nos tocam com a virtus de Deus, fortalecendo-nos para a nossa caminhada rumo à felicidade.
A propósito, Timothy observa: "Quando Jane Elisabeth Stanford visitou a capela da universidade que ela e o seu marido fundaram na Califórnia, mostraram-lhe as estátuas que representavam estas três virtudes: fé, esperança e caridade. E ela perguntou: E a do amor? Ninguém se atreveu a indicar que caridade, neste contexto, significa amor. Nunca discordem de um benfeitor! E assim, a Universidade de Stanford é, tanto quanto sei, o único lugar no mundo que tem a figuração de quatro virtudes teologais."
O humor, a exegese bíblica, as experiências e as histórias das suas viagens apostólicas, as artes e a reflexão teológica tecem este livro admirável que não se esgota numas férias. A eclesiologia e a teologia dos sacramentos exigem o aprofundamento da história de Jesus de Nazaré e da sua significação para uma espiritualidade libertadora. Um dominicano da África do Sul, Albert Nolan, amigo e confrade de Timothy, realizou esse projecto de uma forma que abre portas e janelas para se viver, na aventura humana, a aventura de Deus (1).
Boas férias com Deus e com os amigos. Até Setembro.
(1) Jesus antes do Cristianismo; Jesus Hoje. Uma Espiritualidade de Liberdade Radical, Edições Paulinas
In Público
Frei Bento - 25-07-2010
A reflexão teológica move-se no interior do mistério que pode ser comunicado1.Se não pode haver "cristãos de aviário", como se tentou mostrar no domingo passado, é porque se supõe uma mútua fecundação entre a evolução cultural e a progressiva inteligência afectiva da fé ao longo da vida. Talvez seja também a melhor vacina contra as tentações da pseudo-ortodoxia fundamentalista. Este caminho vai-se construindo de forma elementar na catequese e, de modo mais elaborado, na reflexão teológica. Não apenas através de razões explicativas, mas entrando no jogo das imagens, dos símbolos, das figuras, das linguagens, em todas as expressões da cultura.
Este percurso não se faz de forma intemporal, alheio às conjunturas e aos condicionamentos da história, onde surgem todas as provocações à fé cristã e a fé se deve tornar provocante. Não se trata de uma cedência ao relativismo, mas à verdade que se vai descobrindo e elaborando pouco a pouco e segundo desafios imprevisíveis. Daí, a importância de estar atento às surpresas da linguagem dos "sinais dos tempos".
A reflexão teológica não é provocada, como a ciência moderna, por enigmas, por aquilo que ainda não sabemos, mas que pode vir a ser analisado e explicado. Move-se no interior do mistério que excede a ordem da conceitualização, mas que pode ser comunicado, nomeadamente, no mundo da liturgia e dos sacramentos. Estes são dons da fé, da esperança e do amor oferecidos em matérias sensíveis, na ordem da metáfora e do símbolo. Não é por acaso que, tanto no paganismo, como, depois, no cristianismo, se fala de "iniciação aos mistérios".
E preciso ter isto em conta na chamada "pastoral dos sacramentos", a começar pela do Baptismo, seja de adultos seja de crianças. Para não se cair no caos ou em flutuações subjectivistas, são indispensáveis orientações e medidas estabelecidas pelo Direito Canónico, pelas dioceses e pelas paróquias. Uma certa mentalidade julga que, satisfeitas essas exigências jurídicas e disciplinares, está tudo resolvido, esquecendo que essas condições não ultrapassam muito a realização exterior, formal, das celebrações sacramentais. Se ficarmos por aí, a vida dos sacramentos e da sua inteligência não crescerá no próprio crescimento das pessoas, que passam por muitas fases ao longo da existência.
2. Já me referi várias vezes, nestas crónicas, a Timothy Radcliffe, ex-mestre geral da Ordem Dominicana, professor em Oxford, andarilho do mundo e autor de várias obras de reflexão sobre os confrontos do Evangelho com a vida contemporânea. Recebeu, da Igreja Anglicana, o Prémio Michael Ramsey pelo seu livro, What is the point of being a Christian?, cuja edição portuguesa está em preparação nas Edições Paulinas. Estas já publicaram As sete Últimas Palavras e acaba de sair sobre a Eucaristia uma obra de alta qualidade teológica e cheia de humor: Ir à Igreja Porquê?
Começa assim: "Certo domingo, a mãe acordou o filho com uma sacudidela e disse-lhe que estava na hora de ir para a igreja. Sem resultado. Dez minutos mais tarde, insistiu: - Sai imediatamente da cama e vai para a igreja. - Ó mãe, não me apetece! É tão aborrecido! Porque é que hei-de chatear-me? - Por duas razões: sabes muito bem que deves ir à igreja ao domingo e, em segundo lugar, és o bispo da diocese.
"Não são apenas os bispos que, por vezes, não têm desejo de ir à igreja. Há inquéritos que mostram que uma grande percentagem das pessoas, no Ocidente, acredita em Deus, mas a frequência do culto dominical está a cair a pique. Estão mais interessadas na espiritualidade do que na religião institucional. Dizem sim a Jesus, mas dizem não à Igreja."
3. Como afirma o próprio autor, a Eucaristia representa o drama fundamental de toda a existência humana. Um drama em três actos. Forma-nos como pessoas que crêem, esperam e têm caridade. Estas virtudes são chamadas, habitualmente, virtudes teologais. São teologais, porque constituem uma participação na vida de Deus. A fé, a esperança e a caridade são modos de Deus fazer em nós a sua morada, e de, em Deus, nós estarmos em casa. São virtudes, porque nos tocam com a virtus de Deus, fortalecendo-nos para a nossa caminhada rumo à felicidade.
A propósito, Timothy observa: "Quando Jane Elisabeth Stanford visitou a capela da universidade que ela e o seu marido fundaram na Califórnia, mostraram-lhe as estátuas que representavam estas três virtudes: fé, esperança e caridade. E ela perguntou: E a do amor? Ninguém se atreveu a indicar que caridade, neste contexto, significa amor. Nunca discordem de um benfeitor! E assim, a Universidade de Stanford é, tanto quanto sei, o único lugar no mundo que tem a figuração de quatro virtudes teologais."
O humor, a exegese bíblica, as experiências e as histórias das suas viagens apostólicas, as artes e a reflexão teológica tecem este livro admirável que não se esgota numas férias. A eclesiologia e a teologia dos sacramentos exigem o aprofundamento da história de Jesus de Nazaré e da sua significação para uma espiritualidade libertadora. Um dominicano da África do Sul, Albert Nolan, amigo e confrade de Timothy, realizou esse projecto de uma forma que abre portas e janelas para se viver, na aventura humana, a aventura de Deus (1).
Boas férias com Deus e com os amigos. Até Setembro.
(1) Jesus antes do Cristianismo; Jesus Hoje. Uma Espiritualidade de Liberdade Radical, Edições Paulinas
In Público