Semana e livros da religião
Frei Bento - 07-11-2010
Frei Gaspar da Cruz fez "a primeira monografia impressa na Europa sobre o Celeste Império"1. A semana passada, do ponto de vista religioso, foi um prodígio de acontecimentos. Na segunda-feira foi a celebração democrática da santidade; na terça já foi mais restrita, foi só dos Fiéis Defuntos sem saber quem são eles. Ontem, tivemos a festa do santo português maLis recente, S. Nuno de Santa Maria (Nuno Álvares Pereira: 1360-1431), canonizado por Bento XVI, em 2009. Tornou-se uma figura controversa. Se Camões canta a "ditosa pátria que tal filho teve", Álvaro Cunhal acusa a Igreja Católica de fazer, de um homem de desmedida ganância e avidez, um santo. Outros consagraram-no como religioso carmelita, nunca tendo ele querido ser mais do que um donato que nem o hábito dessa Ordem usou. Para varrer mitos, lendas, exaltações e detracções deslocadas, o académico Aires A. Nascimento agrupou uma série de estudos que restituem, a este grande cristão português, o lugar que a verdade da rigorosa investigação histórica será obrigada a reconhecer-lhe (1).
2.Assinalando o I Centenário da Expulsão das Ordens e Congregações durante a 1 República, decorreu, de terça a sexta-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, um congresso internacional dedicado às Ordens e Congregações Religiosas em Portugal. Memória, Presença e Diásporas. Como vem expressamente justificado no Livro do Congresso, "as ordens religiosas fazem parte da história religiosa, social, cultural e política de Portugal desde a sua génese".
Quem se fixasse apenas na amplidão do programa, no grande número de sessões e de intervenientes previstos, diria que era uma ambição claramente megalómana, sem possibilidade de ser levada a bom termo. Seria esquecer que pertencia a José Eduardo Franco a coordenação geral da organização do congresso que soube rodear-se de uma importante comissão organizadora e, com ela, configurar as comissões de honra, científica, coordenadora executiva e respectivo secretariado, apoiando-se em instituições organizadoras, promotoras e associadas. O grande êxito desta iniciativa conta com toda essa colaboração, mas sem o atrevimento do seu coordenador geral seria inimaginável. Agora, é esperar pelas actas que representam o melhor e permanente fruto cultural de qualquer congresso.
Já tinha sido realizLado, sob a sua direcção, juntamente com José Augusto Mourão e Ana Cristina da Costa Gomes, o monumental Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal (2). Dele se diz que "pela primeira vez na história editorial portuguesa e internacional é publicado um dicionário de horizonte tão abrangente dedicado às ordens e às suas metamorfoses, à luz de um ideário de ecumenismo cultural e científico". São tais as suas dimensões que está previsto ser desdobrado em dicionários parciais, tendo já saído o Dicionário Histórico das Ordens, Institutos Religiosos e Outras Formas de Vida Consagrada Católica em Portugal que, só por si, representa mais de 60 por cento do conjunto. Já, em Fevereiro e na mesma editorial, Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco (coords.) publicaram Ordens e Congregações Religiosas no Contexto da I República.
3.Pertence também à coordenação de Ana Cristina da Costa Gomes e José Eduardo Franco a obra, Dominicanos em Portugal. História, Cultura e Arte (3), actas do congresso internacional destinado a assinalar o VIII Centenário da Fundação da Ordem dos Pregadores e Livro de homenagem a José Augusto Mourão, O.P., director do ISTA. Este dominicano, além da sua área de investigação e de ensino na Universidade Nova de Lisboa, tem o grande mérito de ter promovido vários congressos e colóquios, no âmbito da história dominicana. É reconhecido, em várias instâncias culturais e universitárias, como "um autêntico paladino da criação de uma espécie de nova escola de pensamento à luz do ideário de estudo, de aprofundamento crítico, de produção de cultura esclarecida inscrita na melhor tradição intelectual dominicana europeia que gerou grandes filósofos e teólogos".
Para terminar a breve resenha desta semana, não posso deixar de me referir à preciosa edição de bolso da obra de Frei Gaspar da Cruz, Tratado das Coisas da China. Évora, 1569-1570 (4). O novo prefácio, a introdução, a modernização do texto e as notas são do investigador Rui Manuel Loureiro, que destaca: "A obra do missionário dominicano, que foi a primeira monografia impressa na Europa sobre o Celeste Império, para além de sistematizar de forma magistral todo o conjunto de notícias que haviam sido recolhidas pelos nossos navegantes ao longo de várias décadas de intensos contactos luso-chineses, transmitia também os resultados das indagações levadas a cabo pelo autor em Cantão, por ocasião de uma breve visita efectuada àquela metrópole".
Costuma-se dizer que os portugueses, quando se sentem mal com o presente, refugiam-se na história mítica do passado ou do futuro. As obras evocadas nesta crónica, mesmo quando se referem ao passado, realizam um presente que nos faltava: o conhecimento de nós próprios sob o ponto de vista de uma religião que se transforma, mas não desaparece.
(1) Nuno de Santa Maria. Fragmentos de Memória Persistente, ARM, Lisboa 2010; (2) Gradiva, 2010; (3) Alêtheia Editores, 2010; (4) Biblioteca Editores Independentes, 2010.
In Público
Frei Bento - 07-11-2010
Frei Gaspar da Cruz fez "a primeira monografia impressa na Europa sobre o Celeste Império"1. A semana passada, do ponto de vista religioso, foi um prodígio de acontecimentos. Na segunda-feira foi a celebração democrática da santidade; na terça já foi mais restrita, foi só dos Fiéis Defuntos sem saber quem são eles. Ontem, tivemos a festa do santo português maLis recente, S. Nuno de Santa Maria (Nuno Álvares Pereira: 1360-1431), canonizado por Bento XVI, em 2009. Tornou-se uma figura controversa. Se Camões canta a "ditosa pátria que tal filho teve", Álvaro Cunhal acusa a Igreja Católica de fazer, de um homem de desmedida ganância e avidez, um santo. Outros consagraram-no como religioso carmelita, nunca tendo ele querido ser mais do que um donato que nem o hábito dessa Ordem usou. Para varrer mitos, lendas, exaltações e detracções deslocadas, o académico Aires A. Nascimento agrupou uma série de estudos que restituem, a este grande cristão português, o lugar que a verdade da rigorosa investigação histórica será obrigada a reconhecer-lhe (1).
2.Assinalando o I Centenário da Expulsão das Ordens e Congregações durante a 1 República, decorreu, de terça a sexta-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, um congresso internacional dedicado às Ordens e Congregações Religiosas em Portugal. Memória, Presença e Diásporas. Como vem expressamente justificado no Livro do Congresso, "as ordens religiosas fazem parte da história religiosa, social, cultural e política de Portugal desde a sua génese".
Quem se fixasse apenas na amplidão do programa, no grande número de sessões e de intervenientes previstos, diria que era uma ambição claramente megalómana, sem possibilidade de ser levada a bom termo. Seria esquecer que pertencia a José Eduardo Franco a coordenação geral da organização do congresso que soube rodear-se de uma importante comissão organizadora e, com ela, configurar as comissões de honra, científica, coordenadora executiva e respectivo secretariado, apoiando-se em instituições organizadoras, promotoras e associadas. O grande êxito desta iniciativa conta com toda essa colaboração, mas sem o atrevimento do seu coordenador geral seria inimaginável. Agora, é esperar pelas actas que representam o melhor e permanente fruto cultural de qualquer congresso.
Já tinha sido realizLado, sob a sua direcção, juntamente com José Augusto Mourão e Ana Cristina da Costa Gomes, o monumental Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal (2). Dele se diz que "pela primeira vez na história editorial portuguesa e internacional é publicado um dicionário de horizonte tão abrangente dedicado às ordens e às suas metamorfoses, à luz de um ideário de ecumenismo cultural e científico". São tais as suas dimensões que está previsto ser desdobrado em dicionários parciais, tendo já saído o Dicionário Histórico das Ordens, Institutos Religiosos e Outras Formas de Vida Consagrada Católica em Portugal que, só por si, representa mais de 60 por cento do conjunto. Já, em Fevereiro e na mesma editorial, Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco (coords.) publicaram Ordens e Congregações Religiosas no Contexto da I República.
3.Pertence também à coordenação de Ana Cristina da Costa Gomes e José Eduardo Franco a obra, Dominicanos em Portugal. História, Cultura e Arte (3), actas do congresso internacional destinado a assinalar o VIII Centenário da Fundação da Ordem dos Pregadores e Livro de homenagem a José Augusto Mourão, O.P., director do ISTA. Este dominicano, além da sua área de investigação e de ensino na Universidade Nova de Lisboa, tem o grande mérito de ter promovido vários congressos e colóquios, no âmbito da história dominicana. É reconhecido, em várias instâncias culturais e universitárias, como "um autêntico paladino da criação de uma espécie de nova escola de pensamento à luz do ideário de estudo, de aprofundamento crítico, de produção de cultura esclarecida inscrita na melhor tradição intelectual dominicana europeia que gerou grandes filósofos e teólogos".
Para terminar a breve resenha desta semana, não posso deixar de me referir à preciosa edição de bolso da obra de Frei Gaspar da Cruz, Tratado das Coisas da China. Évora, 1569-1570 (4). O novo prefácio, a introdução, a modernização do texto e as notas são do investigador Rui Manuel Loureiro, que destaca: "A obra do missionário dominicano, que foi a primeira monografia impressa na Europa sobre o Celeste Império, para além de sistematizar de forma magistral todo o conjunto de notícias que haviam sido recolhidas pelos nossos navegantes ao longo de várias décadas de intensos contactos luso-chineses, transmitia também os resultados das indagações levadas a cabo pelo autor em Cantão, por ocasião de uma breve visita efectuada àquela metrópole".
Costuma-se dizer que os portugueses, quando se sentem mal com o presente, refugiam-se na história mítica do passado ou do futuro. As obras evocadas nesta crónica, mesmo quando se referem ao passado, realizam um presente que nos faltava: o conhecimento de nós próprios sob o ponto de vista de uma religião que se transforma, mas não desaparece.
(1) Nuno de Santa Maria. Fragmentos de Memória Persistente, ARM, Lisboa 2010; (2) Gradiva, 2010; (3) Alêtheia Editores, 2010; (4) Biblioteca Editores Independentes, 2010.
In Público