Subir aos céus
Frei Bento - 05-06-2011
O grande poeta S. João da Cruz disse o que, na fé cristã, é "subir aos céus"1. Dizia-me, há dias, um amigo bastante céptico: quantas histórias inventamos para ter a consolação de estar e continuar vivos, mesmo quando chegou, com toda a evidência, a "nossa hora" de verificar que tudo acabou, sem nada estar consumado!
A minha impressão é outra: são cada vez mais raras as histórias de consolação, mesmo quando a morte se manifesta como injustiça irreparável.
Sempre estive intimamente ligado a narrativas, declarações, sentenças e doutrinas, suscitadas pela espantosa vida de Jesus Cristo, empenhadas em dizer que a morte não podia vencer aquela respiração da vida, aquele dom incondicional e sem medida. São histórias de resistência e de saída do espaço da destruição: nunca mais morrerá. Se em Deus vivemos, nos movemos e existimos, por Deus seremos esperados. A misteriosa essência de Deus é o nosso esconderijo.
É nas diversas formas de linguagem que pensamos e dizemos o mundo. Tem a singularidade de se pensar a si própria para reflectir sobre a natureza dos percursos e expressões. O primeiro cuidado a ter consiste em não confundir a linguagem poética, musical, artística com a linguagem da filosofia e da investigação científica. A linguagem das religiões, a da Bíblia, por exemplo, a dos textos cristãos, situa-se no mundo simbólico e procede por metáforas, evocações. Isto não significa que seja menos real do que a linguagem do que se apresenta como histórica e empiricamente verificável. Pelo contrário, quanto mais poético, mais real. O enfraquecimento da linguagem religiosa começa com a anemia simbólica e com a transição para secas expressões doutrinais com pretensões a medir a verdade da fé. Quando um Credo se apresenta, não como lugar de trânsito para o infinito, mas termo de viagem, resvala para as tentações integristas e fundamentalistas.
2. Terá algum sentido continuar com a festa da Ascensão? Que poderá ela evocar, hoje, para crentes e não crentes? Para a ciência, o céu ou os céus já não são o que eram. Ninguém vai pensar que Jesus foi um dos primeiros astronautas. Por outro lado, a própria palavra "ascensão" está quase reduzida a significar a subida na carreira profissional, artística, política, futebolística e até eclesiástica. Alguns jornais usam uma mão invisível para promover ou despromover as figuras que lhes agradam ou desagradam. É o sobe e desce.
Até há pouco tempo, em muitos lugares da cristandade, a festa da Ascensão celebrava-se numa quinta-feira, 40 dias depois da Páscoa. Em contexto de ligação à natureza e com antecedentes pagãos, continua a ser a festa da espiga e das flores, como expressão de desejos fundamentais: a espiga para que haja pão; as folhas de oliveira para que haja paz e luz; as flores, malmequeres, papoilas, etc., para que haja alegria.
Na economia dos feriados, a festa da Ascensão passou para este domingo. É evocada, de forma magnífica, nos Actos dos Apóstolos (1,6-11). No Evangelho segundo S. Mateus, fica-se com a impressão de que o autor estava com muita pressa em terminar a sua obra. Põe as mulheres em acção que comunicam, aos discípulos desvairados, que há um encontro marcado com Jesus, num monte da Galileia. Todos compareceram, mas alguns persistiram na dúvida. Jesus evoca a sua autoridade para acabar com as delongas e envia-os em missão universal, selada com o baptismo em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo, com o encargo de ensinar e praticar tudo quanto lhes ordenara e com uma promessa solene: "Eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mt 28, 16-20).
Lucas tem muito mais tempo, porque decidiu escrever um segundo volume para narrar o que, em Mateus, vem resumido num parágrafo. Insiste na lentidão dos discípulos em entender aquilo para que foram convocados. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, voltavam à entranhada questão do messianismo político: "Senhor, é agora que ides restaurar a realeza em Israel"?
Jesus tem uma reacção desesperada: isso não é assunto meu, esgotei a minha capacidade de vos convencer. "[Mas o] Espírito Santo descerá sobre vós e dele recebereis força. Sereis, então, minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra."
O livro dos Actos acaba também por despachar a reunião: "Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem o ocultou aos seus olhos. Estando de olhar fito no céu, enquanto Jesus se afastava, eis que apareceram junto deles dois homens vestidos de branco que lhes disseram: "Homens da Galileia, porque estais a olhar para o céu? Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o céu, virá do mesmo modo que o vistes partir.""
3. O que de pior nos pode acontecer, na leitura destas narrativas, é interpretá-las como descrições históricas, geográficas e cosmológicas. São textos sobre os contraditórios efeitos da Páscoa nos discípulos por causa da sua lentidão em apreender o sentido do que tinha acontecido com Jesus. A dificuldade dos discípulos significa a perpétua dificuldade da Igreja em compreender que Jesus é o "sonho de Deus em carne viva" e não um projecto de dominação social.
O grande poeta S. João da Cruz disse o que, na fé cristã, é "subir aos céus": "Quanto mais alto se sobe,/ tanto menos se entendia,/ como a nuvem tenebrosa/ que na noite esclarecia;/ por isso quem a sabia/ fica sempre não sabendo,/ toda a ciência transcendendo."
Frei Bento - 05-06-2011
O grande poeta S. João da Cruz disse o que, na fé cristã, é "subir aos céus"1. Dizia-me, há dias, um amigo bastante céptico: quantas histórias inventamos para ter a consolação de estar e continuar vivos, mesmo quando chegou, com toda a evidência, a "nossa hora" de verificar que tudo acabou, sem nada estar consumado!
A minha impressão é outra: são cada vez mais raras as histórias de consolação, mesmo quando a morte se manifesta como injustiça irreparável.
Sempre estive intimamente ligado a narrativas, declarações, sentenças e doutrinas, suscitadas pela espantosa vida de Jesus Cristo, empenhadas em dizer que a morte não podia vencer aquela respiração da vida, aquele dom incondicional e sem medida. São histórias de resistência e de saída do espaço da destruição: nunca mais morrerá. Se em Deus vivemos, nos movemos e existimos, por Deus seremos esperados. A misteriosa essência de Deus é o nosso esconderijo.
É nas diversas formas de linguagem que pensamos e dizemos o mundo. Tem a singularidade de se pensar a si própria para reflectir sobre a natureza dos percursos e expressões. O primeiro cuidado a ter consiste em não confundir a linguagem poética, musical, artística com a linguagem da filosofia e da investigação científica. A linguagem das religiões, a da Bíblia, por exemplo, a dos textos cristãos, situa-se no mundo simbólico e procede por metáforas, evocações. Isto não significa que seja menos real do que a linguagem do que se apresenta como histórica e empiricamente verificável. Pelo contrário, quanto mais poético, mais real. O enfraquecimento da linguagem religiosa começa com a anemia simbólica e com a transição para secas expressões doutrinais com pretensões a medir a verdade da fé. Quando um Credo se apresenta, não como lugar de trânsito para o infinito, mas termo de viagem, resvala para as tentações integristas e fundamentalistas.
2. Terá algum sentido continuar com a festa da Ascensão? Que poderá ela evocar, hoje, para crentes e não crentes? Para a ciência, o céu ou os céus já não são o que eram. Ninguém vai pensar que Jesus foi um dos primeiros astronautas. Por outro lado, a própria palavra "ascensão" está quase reduzida a significar a subida na carreira profissional, artística, política, futebolística e até eclesiástica. Alguns jornais usam uma mão invisível para promover ou despromover as figuras que lhes agradam ou desagradam. É o sobe e desce.
Até há pouco tempo, em muitos lugares da cristandade, a festa da Ascensão celebrava-se numa quinta-feira, 40 dias depois da Páscoa. Em contexto de ligação à natureza e com antecedentes pagãos, continua a ser a festa da espiga e das flores, como expressão de desejos fundamentais: a espiga para que haja pão; as folhas de oliveira para que haja paz e luz; as flores, malmequeres, papoilas, etc., para que haja alegria.
Na economia dos feriados, a festa da Ascensão passou para este domingo. É evocada, de forma magnífica, nos Actos dos Apóstolos (1,6-11). No Evangelho segundo S. Mateus, fica-se com a impressão de que o autor estava com muita pressa em terminar a sua obra. Põe as mulheres em acção que comunicam, aos discípulos desvairados, que há um encontro marcado com Jesus, num monte da Galileia. Todos compareceram, mas alguns persistiram na dúvida. Jesus evoca a sua autoridade para acabar com as delongas e envia-os em missão universal, selada com o baptismo em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo, com o encargo de ensinar e praticar tudo quanto lhes ordenara e com uma promessa solene: "Eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mt 28, 16-20).
Lucas tem muito mais tempo, porque decidiu escrever um segundo volume para narrar o que, em Mateus, vem resumido num parágrafo. Insiste na lentidão dos discípulos em entender aquilo para que foram convocados. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, voltavam à entranhada questão do messianismo político: "Senhor, é agora que ides restaurar a realeza em Israel"?
Jesus tem uma reacção desesperada: isso não é assunto meu, esgotei a minha capacidade de vos convencer. "[Mas o] Espírito Santo descerá sobre vós e dele recebereis força. Sereis, então, minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra."
O livro dos Actos acaba também por despachar a reunião: "Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem o ocultou aos seus olhos. Estando de olhar fito no céu, enquanto Jesus se afastava, eis que apareceram junto deles dois homens vestidos de branco que lhes disseram: "Homens da Galileia, porque estais a olhar para o céu? Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o céu, virá do mesmo modo que o vistes partir.""
3. O que de pior nos pode acontecer, na leitura destas narrativas, é interpretá-las como descrições históricas, geográficas e cosmológicas. São textos sobre os contraditórios efeitos da Páscoa nos discípulos por causa da sua lentidão em apreender o sentido do que tinha acontecido com Jesus. A dificuldade dos discípulos significa a perpétua dificuldade da Igreja em compreender que Jesus é o "sonho de Deus em carne viva" e não um projecto de dominação social.
O grande poeta S. João da Cruz disse o que, na fé cristã, é "subir aos céus": "Quanto mais alto se sobe,/ tanto menos se entendia,/ como a nuvem tenebrosa/ que na noite esclarecia;/ por isso quem a sabia/ fica sempre não sabendo,/ toda a ciência transcendendo."